Canga de Horácio Bento de Gouveia – Do romance ao teatro radiofónico

Résumé

Sendo a transposição literária uma prática que tem persistido ao longo da história, vamos, neste ensaio, cotejar duas adaptações para teatro radiofónico do romance Canga do escritor madeirense Horácio Bento de Gouveia. Este género cultural, que teve grande audiência em Portugal nos anos 50 e 60 do século passado e que não cessou de evoluir à margem do audiovisual crescentemente hegemónico, além de difundir o texto literário de relevância cultural, ainda que de uma forma mediada, permite a fixação de um cânone da narrativa de ficção para as novas gerações. Sem comprometerem o espírito da obra, Judite Navarro e Carlos Cabral vão propor, em tempos diferentes, versões distintas do romance, quer dando uma interpretação sua da obra, quer visando corresponder às expectativas e ao gosto da audiência pressentida.

Plan

Texte

Ao longo da História da Literatura ocidental, as adaptações e as traduções foram consideradas por muitos intelectuais como subprodutos culturais que pouco prestigiavam os seus obreiros. Todavia, a tradução começou a ser encarada de forma diferente no século XX, quando se tomou consciência da importância do seu papel nos intercâmbios culturais e passou a ser vista como uma arte criativa na qual personalidades literárias se ensaiaram com sucesso. Além disso, o advento das novas indústrias de entretenimento, ligadas à cultura de mass media, ou seja, a uma arte popular, baseada numa praxis do concreto, num fazer mecânico ou tecnológico, veio consagrar um novo campo de pesquisa no âmbito dos Estudos Culturais, dada a sua problemática implicar uma gestão de vários recursos, técnicos, financeiros e humanos e dado o seu impacto socioeconómico e ideológico na sociedade. Talvez, por essa razão, os críticos tenham deixado de se interrogar sobre a legitimidade de um estudo acerca de uma obra literária e das suas adaptações para uma outra linguagem artística. Os elos são mais do que evidentes: os conceitos e as hipóteses, os conteúdos e as formas expressas por cada qual influenciam-se, interpenetram-se, enriquecem-se. Na prática, a transposição teatral de um romance implica sofrer alterações a vários níveis: o modo de interpretação sujeito a várias acomodações, a ênfase em determinados tópicos em detrimento de outros, a configuração ideológica moldada – ou não – pelo padrão do gosto dominante e, finalmente, o suporte de mediação que os distingue.

Nesta perspectiva, importa observar a problemática da transversalidade da obra literária: um romance pode, por exemplo, transformar-se em teatro radiofónico, ilustrando assim a versatilidade das artes verbais. Em suma, procuraremos comentar os jogos combinatórios da re-composição de uma escrita que procura dar a ouvir um mundo particular através do veículo radiofónico.

O teatro radiofónico, uma expressão artística diferenciada

Sobre o papel social e o poder sugestivo que o teatro radiofónico exerceu junto das audiências em vésperas da Segunda Guerra Mundial até a televisão se ter generalizado nos lares das populações do mundo ocidental, bastaria evocar a radiofonização de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, por Orson Welles, a 30 de Outubro de 1938, nos Estados Unidos, e cujo impacto se tornou um caso de estudo.

Em Portugal, o teatro radiofónico – em folhetim1 – esteve em voga e fez tradição, em particular, entre os anos 1950-1970, ao adaptar clássicos da Literatura Portuguesa do séc. XIX e, posteriormente, obras que retratavam problemas sociais do quotidiano. Lembra Eduardo Street, em O Teatro Invisível, que «os programas eram ouvidos, saboreados em silêncio como um digestivo» (Street 2006: no texto da contracapa), pois a rádio, tal como foi e continua a ser, tem-se afirmado como um media popular. A primeira obra de ficção adaptada para o teatro radiofónico na Emissora Nacional (1935-1976) terá sido As Pupilas do Sr. Reitor de Júlio Dinis, em 1950. O sucesso foi tal que passou a constituir um marco, um modelo que originou uma tradição cultural, determinando uma praxis com técnicas e regras aplicadas por sistema. Lê-se, ainda, no artigo intitulado “Que pretendem «os romances radiofónicos?»2, publicado em 1971 na imprensa madeirense, que

A sua audição é enorme e encontra maior número de adeptos precisamente nas camadas economicamente mais desfavorecidas e culturalmente menos preparadas. § O conteúdo destes «romances radiofónicos» difere um pouco, em vários pormenores, de estação para estação. Enquanto na Emissora Nacional os «romances» são mais «suaves» do ponto de vista emocional e mais dedicados à exaltação das «virtudes excelsas» de fidalgos e endinheirados, nas outras estações (Rádio Clube Português, por exemplo), o teor emocional e de suspense é mais elevado e o sentimento amoroso, existente em todo o tipo de «romances», reveste-se, neste último caso, de carácter mais «leviano». § Num aspecto, porém, tudo é idêntico: o ponto final desses «folhetins» radiofónicos. Tudo acaba da melhor das formas: o amor, o bem, a razão vencem sempre. § A sua transmissão quase quotidiana consegue fazer interessar vivamente os ouvintes pelo desenrolar dos episódios, levando-os ao ponto de discutir, acesamente, o comportamento deste ou daquele personagem, as suas reacções, os lances da intriga — como se se tratassem de elementos da sua própria vida. § Por outro lado, tais «romances» conseguem também fazer acreditar o público ouvinte na «bondade», na «generosidade» das classes possidentes, no «destino» fatal dos desfavorecidos, condenado a transmitir-se de geração em geração, se não houver uma «alma caridosa» que os ajude na ascensão e libertação, no final feliz de todos os idílios amorosos…

É, assim, neste enquadramento sociocultural de trabalho ideológico por parte dos mass media que surge o primeiro projecto para adaptar o romance Canga3, de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), em 1978, por Judite Navarro4 (1918-1987). O roteiro da adaptação de Canga, a que tivemos acesso graças à gentileza da viúva do escritor madeirense, deu então entrada nos «serviços criativos» da Radiodifusão Portuguesa, ex-Emissora Nacional, sob o registo de «programa nº 609» a 13-XII-1978, mas por motivos que desconhecemos não chegou à realização. Não será, por isso, de admirar que a adaptação que Judite Navarro fez do romance Canga, sendo ela uma colaboradora de longa data da Emissora Nacional, tenha herdado algo da tradição compositiva e dos princípios de decoro que nela prevaleciam. Ainda assim, propor, em finais de 1978, uma ficção de Bento de Gouveia a uma larga audiência foi tarefa de uma geração de criativos cuja vocação era não apenas entreter, divertir, como também sugerir pontos de reflexão sobre os problemas de uma paisagem social do país (estava-se então no rescaldo da Revolução do 25 de Abril e na euforia da implantação da autonomia política e administrativa da ilha da Madeira).

Quase trinta anos depois da primeira adaptação de Canga para o teatro radiofónico, em 2007, Carlos Cabral, professor na Escola Superior de Teatro e Cinema e autor/adaptador de peças para a rádio, elabora um novo projecto de folhetim. Segundo Eduardo Luiz, director artístico do Teatro Experimental do Funchal (T.E.F.) que o realizou – a quem devemos a amabilidade de nos ter concedido uma cópia do roteiro de Carlos Cabral –, o folhetim foi para o ar a partir do dia 16 de Março de 2007, no programa «Bastidores» da Antena 1, com duração de dez minutos. É crível que a escolha de Carlos Cabral tenha recaído sobre este romance bentiano, por conter, além da sua densidade artística, substanciais elementos históricos, sociais e culturais que convidam a uma reflexão de identidade, reforçando o sentimento de pertença a uma geografia e a uma comunidade de destino.

Se nos idos de 1978, o teatro radiofónico perdia audiência a favor das telenovelas5, este específico género cultural não tem cessado de cativar, como ilustra, aliás, a iniciativa de Carlos Cabral em parceria com o Teatro Experimental do Funchal, cultores e actores que o praticam em programas radiofónicos de carácter cultural, tocando um público de aficionados e de especialistas.

Assim, com este estudo comparativo – fixado num corpus puramente textual, visto o texto dramático não deixar de ser um texto sujeito a leituras e interpretações –, pretendemos contribuir para a compreensão de um fenómeno cultural que já foi muito popular, mas que continua a evoluir, quer do ponto de vista do público, quer do ponto de vista da dinâmica sonora diegética (a lógica áudio do universo representado). Com efeito, o teatro radiofónico parece, actualmente, ter maior receptividade junto de comunidades; procurando aproximar-se do meio sociocultural a que se destinam, as peças tendem a vincar aspectos com os quais determinada comunidade se identifica.

O romance Ilhéus/Canga

Além da sua intrínseca qualidade literária salientada por Aquilino Ribeiro, que o prefaciou, e do seu valor cultural indiciado pelas sucessivas reedições6, o romance Ilhéus/Canga representa um admirável fresco da ilha da Madeira, visando ilustrar a exploração humana de que padecia certo mundo rural ilhéu, bem como a evolução dos costumes da sociedade funchalense da primeira metade do século passado. Neste sentido, não admira que tenha inspirado vários projectos de adaptação – não tendo a maioria passado, malogradamente, do papel (teatro radiofónico, cinema e ópera7) –, visto ser considerada por muitos madeirenses como a obra mais representativa de uma memória e de uma experiência da ilha, configuradora de um horizonte identitário insular.

A acção principal da narrativa remonta a 1914, na freguesia da Ponta Delgada, «terreola atrasadinha, de convivência rústica», no dizer do autor, e, paralelamente, em jeito de contraponto, passará a decorrer também no Funchal e em Lisboa. A ficção inscreve-se, simultaneamente, na narrativa de aprendizagem com fundo autobiográfico e no modo literário da crónica. Nos seus múltiplos discursos, o livro navega por entre as águas do presencismo, do neo-realismo e dos regionalismos aquiliniano e brasileiro, apontando claramente para a reivindicação social, uma das missões que a literatura ocidental da época levava a peito.

O tema central do romance é o drama da colonia, antigo regime agrário que vigorava ainda na Madeira, e que teria tido particular expressão desumana na Ponta Delgada. Esse regime prendia à terra o colono, nela trabalhando de sol a sol, em benefício do senhorio, sem nunca poder ser dono do solo, mas apenas das benfeitorias8, cujo valor de transacção dependia da vontade do terra-tenente. As famílias de colonos aqui retratadas, os Péleas, os Garipos e os Misérias, entre outros, contracenam com os gananciosos senhorios, Luís da Feiteira e Filipe Custódio. Esta situação é acompanhada por Manuel Esmeraldo, o fio condutor da narrativa e o tipo do bom rapaz da burguesia rural, sensível e absorto, que inicia um percurso sentimental e que aspira a pertencer à elite intelectual. Desse processo de tomada de consciência, resulta a afirmação do protagonista contra uma situação económica e social que o indigna. O percurso de Manuel leva o leitor a descobrir a vida da aldeia, depois, a vida mundana funchalense da época em que se dançava o tango e o fox-trot nos bailes do Casino e, por fim, a vida boémia de estudante em Lisboa. Nessas atmosferas recriadas, denuncia-se a dissolução de valores tradicionais e certo artificialismo no modo de viver das pessoas em meio urbano.

Apropriação do modelo literário

Livre ou próximo do original, a adaptação literária vai funcionar como um hipertexto, de acordo com a terminologia de Gérard Genette (v. Palimpsestes), no sentido em que constitui um prolongamento, uma extensão, uma reformulação ou uma reactualização da obra-fonte. Este processo, que remonta à situação de enunciação e adapta a mensagem por meio de uma equivalência semântica para outra linguagem artística, opera, na verdade, como uma imagem refractária da obra escolhida: projecta a mesma identidade, mas com várias distorções. Roman Jakobson (1986: 79) situa-o no campo da tradução intersemiótica.

O romance e as adaptações em análise opõem-se singularmente pelo facto de a ficção ser a fonte dos guiões e de nada dever a um «modelo» narrativo. A adaptação de Judite Navarro e a de Carlos Cabral desviam-se do original, por nele operar uma manipulação, logo, uma transformação, submetendo-se a um processo de recriação. Respeitam, no essencial, o seu esquema narrativo, mas tomam para com ele algumas liberdades significativas: podem suprimir ou substituir papéis, redistribuir protagonismos, criar novas personagens, acrescentar ou retirar elementos com valor documental, redefinir determinadas situações e simbolismos.

Na adaptação teatral, as convenções dramáticas obrigam a um reajustamento do texto a nível peritextual, porque não pode, por essência, contemplar todas as condições de enunciação. Com efeito, a transformação do romance em texto de modo dialogal resulta da apropriação do enredo, da simplificação da estrutura narrativa, da introdução de elementos que ajudam a construir um território do imaginário com bases estáveis e conhecidas da maioria do público a que se destinam. Quando Bento de Gouveia cria e Judite Navarro e Carlos Cabral recriam o drama do colono, o primeiro recorda experiências vividas no passado ao passo que os segundos encenam actos e falas para serem ouvidas em tempo presente. Se a vantagem do romance é o de poder fazer a economia do diálogo, subentendendo-o na narração, cabe à adaptação transferir parte do conteúdo da narrativa para as falas das personagens. A operação rege-se pelos princípios de economia de meios, de concisão do enredo e da eficácia dramática. Se olharmos para a substância das adaptações, relativamente ao quadro referencial, às personagens e às cenas ou sequências, podemos reter, dessa análise, várias constatações interessantes.

Em primeiro lugar, a intriga é consideravelmente simplificada. O «adaptador» retém os momentos cruciais da acção e abandonam as partes descritivas e/ou líricas, de modo a respeitar a «ossatura» do enredo. No texto-fonte, as sequências narrativas são mais desenvolvidas e há um maior número de personagens (por exemplo, o grupo social dos colonos é bem maior no romance), bem como uma variedade de lugares que as adaptações restringem ou simplificam. A título indicativo, no roteiro de Judite Navarro, as sequências narrativas que ilustram os dez anos que Manuel passou em Lisboa são reduzidas a duas breves cenas num café lisboeta e, no folhetim de Carlos Cabral, ao episódio da leitura da carta que o pai de Manuel lhe enviou, dando notícias da terra. Como a sonoplastia é parte integrante da encenação, ambas as adaptações tendem a situar as acções num ambiente que se apresenta, simultaneamente, como realista e simbólico: para sugerir o ambiente de campo, dar-se-á a ouvir aves e grilos; para indiciar uma casa de tolerância, reproduz-se o som de uma pianola eléctrica ou de uma grafonola.

Em segundo lugar, o tratamento a que as personagens são submetidas torna-as menos ambíguas através de um comportamento previsível. Cada personagem é, ao mesmo tempo, individualizado e representativo de um tipo humano facilmente identificado, quer pelos modos manifestos, quer pelo tom de voz (remetendo para aquilo que se poderia apelidar de iconicidade sonora da voz: jovial ou melancólico, urbano ou rude, sereno ou ríspido) que vai potenciar o jogo das atracções e das oposições na lógica da acção. A esse respeito convém prestar atenção às indicações de régie que definem a personagem, como se pode ler na adaptação de Judite Navarro: «Emília Pélea (mulher do campo, humilde, bondosa)», «José Maria (25 anos, alegre, desinibido)» ou «Luís da Feiteira (meia-idade. Duro, autoritário)». Se, por exemplo, confrontarmos a caracterização de Manuel Esmeraldo no original e nas adaptações para teatro radiofónico, verificamos que, no romance, a construção do protagonista avança num modo alusivo e latente, ao passo que, nos folhetins, Manuel surge de imediato como uma personalidade fora do comum: é determinado, generoso, romântico e humano. Naturalmente, as suas inclinações e o seu estatuto social vão colocá-lo em situação de poder aproximar-se de Eglantine/Cristina9, a figura feminina que, à partida, parece em tudo corresponder-lhe.

Em terceiro lugar, percebe-se que para o público poder seguir a conversa e captar a situação sem grande esforço, a cena raramente junta mais de três interlocutores. Como o diálogo pressupõe encontros e convívios, muitas cenas desenrolam-se em torno de uma mesa, seja numa «venda» ou num café, seja numa sala de jantar ou num salão de baile – situação ideal para confraternizar – e é tecnicamente fácil recriar o ambiente sonoro que lhe está associado (o tilintar da louça e dos talheres, o líquido a correr no copo, o rumor de vozes e a música tocada pela orquestra). O retrato das personagens é sugerida quer através da voz e da fala que cada qual produz, quer através da apreciação que uma personagem é levada a fazer oralmente acerca de outra (por exemplo, uma apreciação do tipo: «é mesmo bonita!»).

Em quarto lugar, verifica-se que as didascálias indicam elementos descritivos que enquadram as situações da acção, mas somente aqueles que se compaginam com as convenções e técnicas do folhetim radiofónico e/ou da arte sonora. O problema do tempo obriga a gerir de forma diferente os pormenores da descrição. A mudança do ponto de vista na peça altera, por vezes, a configuração da cena relativamente à construção do cenário enquadrada no romance. No cotejo entre o texto-fonte e o texto adaptado de Judite Navarro podemos relevar, por exemplo, os seguintes aspectos: no romance, a paisagem é dada a ver ao leitor ao mesmo tempo que as personagens10 a descobrem, ao passo que o roteiro do sétimo episódio sugere o cenário, antes da entrada das personagens, com a indicação sonora: «(rumor de levada de água)». Os pormenores da descrição de Aguagem Alta no romance não são retomados na adaptação: o tempo é contado, importa ser conciso e é a personagem, Perestrelo, que insinua o quadro descritivo da cena através da apreciação: «– Aguagem Alta! Bem bonita esta levada!» (7º episódio, p. 3).

Em quinto lugar, um estudo do pormenor faz ressaltar a diferença do ponto de vista no transcorrer da narrativa: no romance, grande parte da diegese é mediatizada pelo narrador, mercê da sua univocidade que controla11 o enquadramento dos enunciados e a distribuição, quase sempre, homogénea das falas das personagens. Nos textos de tipo dialogal são as indicações cénicas que vêm assegurar a função que, na arte romanesca, incumbe ao narrador. Nas adaptações teatralizadas, tudo é revelado ao público através da fala das personagens que interagem nos diálogos. Com efeito, são as sucessivas situações de comunicação a que pertencem as trocas verbais que estruturam e mediatizam a narrativa, através do sistema das personagens assente em pares: o par homem/mulher, o par jovem inteligente/maduro-experiente, o par rústico/citadino, o par influente/humilde, cujas relações se fortalecem, se cortam ou se retomam ao longo do folhetim. O par Manuel e Cristina vai funcionar como o contraponto do par Maria e Mendes. Além disso, reproduzir as «reflexões interiores» das personagens não parece exequível nas transposições: os adaptadores preferem transformá-las em elemento do diálogo. A título exemplificativo, o trecho do monólogo interior do Padre Casimiro, patente no décimo capítulo do romance Canga (2008: 67-68), é mudado num diálogo entre ele e Manuel, no quinto episódio do roteiro de Judite Navarro. No sexto episódio do folhetim de Carlos Cabral, entra em cena uma personagem que não existe no romance, a «Rosária, criada do padre», para com ele comentar a situação do levantamento popular.

No processo de adaptação de Ilhéus/Canga para o texto dramático, tudo tenderá para ser exteriorizado, não somente através da fala, mas também através da entoação da voz (suavidade ou dramatismo), como se pode intuir a partir deste passo12 retirado do roteiro de Carlos Cabral: «MARIA (perdida de desejo, sentindo-se desfalecer) – Não seja mau… Pode vir alguém… quando a gente casar, então sim… (5º episódio, p. 2)». Assim, não será de menosprezar a expressividade de um suspiro, de uma gargalhada ou de um silêncio.

Sublinhado o primado da voz humana na montagem da peça radiofónica, convém referir, por fim, a importância da sonoplastia e da música. Os ruídos devem ser tratados de modo a construir verosimilhança (efeito de real), porque, ao criar ambientes, parte da informação relativa aos quadros de acção passa por eles (poder sugestivo). A música pode também revestir uma função narrativa e/ou simbólica. Na montagem da trilha sonora para a realização do projecto, são vários os motivos que determinam a utilização da música: situar a acção num determinado espaço geográfico e sociocultural; anunciar a tensão dramática de uma cena importante; engendrar, retomando, por exemplo, uma melodia popular, uma afinidade entre o folhetim e o público; constituir um eco poético através de uma melodia; assinalar a mudança de cena através do «separador» ou destacar, por via de uma «rajada musical» ou de um «separador breve», uma situação geradora de tensão dramática.

Regra geral, o conjunto tende a uma significativa redução de elementos constitutivos dos quadros de acção, ocasionando uma forte concentração do enredo. A transmissão da narrativa é assegurada pelos diálogos que não somente se devem apresentar como conversas verosímeis entre interlocutores, como também se organizarem de modo a mediatizar a narrativa junto do público. Além disso, parece que o autor do texto adaptado parece preocupar-se em conferir à narrativa uma visão de conjunto harmonizada, passível de se impor ao público como uma evidência da vida. Ao desenvolver esse processo de reformulação de uma história já estabelecida para um meio de difusão específico e para uma determinada audiência, este acabará por investir no estereótipo (quer cultural, quer linguístico), na emoção e na sua idealização a fim de tornar a história mais dinâmica, intensa e de fácil interpretação.

As adaptações para teatro radiofónico

Dada a distância temporal que separa as adaptações em apreço, vale a pena confrontá-las para ver que leituras fazem do texto original e como nelas se inscrevem as preocupações e as ideologias da época a que pertencem.

A matéria verbal, situacional e de ficção que ambos os adaptadores extraíram do romance Canga devia acomodar-se a uma estrutura padronizada, que tomava em linha de conta o formato comercial (episódio com duração de dez a quinze minutos), a importância da montagem técnica, as convenções do diálogo, a dicção e a interpretação dos actores. Com efeito, o teatro radiofónico é, substancialmente, composto de vozes (falas, diálogos e expressão vocal humana), de ruídos (actividades humanas e sons da natureza) e de músicas (com valor representativo ou expressivo), que se inscrevem numa rede de significações com força sugestiva. Estas modificações explicam-se, em parte, tanto por motivos técnicos como por razões ideológicas. Com efeito, a preocupação dos adaptadores em aproximarem a matéria ficcional do público visado, orientam a recriação segundo uma intencionalidade específica – a de entreter e de ilustrar e divulgar uma obra de reconhecido valor cultural –, procurando responder ao seu provável horizonte de expectativa a que o novo suporte da narrativa obriga (designadamente, a convenção deste género teatral de propor a vitória do bem sobre o mal).

Vale a pena observar que a adaptação de Judite Navarro foi realizada a partir da terceira edição da narrativa rebaptizada Canga (1975), ao passo que a de Carlos Cabral deriva da sua primeira edição, vindo então a público sob o título Ilhéus (1949). Se a opção de Judite Navarro parece ser a mais natural, por recorrer à versão do romance dada como acabada pelo autor, a de Carlos Cabral pode explicar-se por motivos pragmáticos: sabendo que a adaptação para um texto dramático consiste num obrigatório trabalho de concisão, partir da versão mais curta da obra editada representará um ganho de tempo e de esforço.

Pensado para atingir um público alargado por via de uma emissora com cobertura nacional, a adaptação de Judite Navarro permitia divulgar um autor, Bento de Gouveia, e uma obra, Canga, pouco divulgado junto do grande público português. No seu roteiro, coloca sobretudo o enfoque na figura de Manuel Esmeraldo, sem deixar no entanto de dar conta da vida dos colonos; reforça o bom humor no texto, aproximando-o da tradição estética da «comédia à portuguesa». No caso da adaptação realizada por Carlos Cabral, a situação é outra: destinada a ser difundida no espaço insular, através da «Radiodifusão Portuguesa – Madeira», a obra e o autor divulgados são considerados de interesse relevante no âmbito dos valores culturais da Região. A intenção didáctica é clara, como se pode inferir da «apresentação» que encena um diálogo entre «Ela», voz feminina a representar o/a ouvinte, e o «Eduardo», o director do folhetim. Esta troca verbal vai permitir contextualizar o romance seleccionado e adaptado, explicar os temas dominantes do enredo (o regime de colonia, a condição do colono e o resumo da acção), bem como publicitar o «genérico» do folhetim. Com efeito, a tonalidade e o enfoque diferem ligeiramente dos do texto de Judite Navarro: o folhetim de Carlos Cabral acompanha igualmente a evolução do protagonista, mas segue, com maior atenção, a vida de três famílias de camponeses, os Garipos, os Péleas e os Misérias, ilustrando com ênfase os problemas que o regime agrário da colonia gerava, acentuando-lhe o traço melodramático. Sendo assim, o roteiro de Judite Navarro apresenta uma estética da meia-tinta com tendência moralizante, o de Carlos Cabral parece insistir em contrastes sociais mais fortes.

Como seria de esperar, os diálogos das adaptações aproveitam, em boa medida, os diálogos do romance. No entanto, estes sofrem várias manipulações que, além de darem conta das informações relevantes para a compreensão do enredo, visam a coloquialidade e o discurso impressivo, resultando numa banalização da fala. Neste sentido, assistimos a uma substituição do enunciado original por um enunciado mais acessível e corrente de modo a aproximá-lo do ouvinte, como neste passo, escolhido quase ao acaso, entre muitos:

PERESTRELO (pausadamente) – Este carreiro, talhado na rocha, onde nos encontramos, é comum a toda a costa norte… Repara, Cristina: os homens que o fizeram limitaram-se a cavar uns degraus…. Sem precaução de proteger as pessoas que passam por aqui…

CRISTINA – Não há um resguardo, nem nada… com estes precipícios?

PERESTRELO – Estás a ver a altura?!

CRISTINA – Sim, pai. É uma coisa que assusta.

MANUEL – E já era tempo de construírem uma estrada que beneficiasse estas povoações do Norte… (7º episódio, p. 3)13

Este procedimento justifica-se pelo facto de ditar uma escrita para ser falada, concebida com o intuito de ser apreendida pelo ouvido, de ser dada em situação e, como toda a linguagem verbal, de se inscrever na linearidade orientada do tempo, linearidade essa irreversível em representação. Os textos adaptados tendem, deste modo, a apagar o estilo do autor da obra original. A esse respeito, observa Eduardo Street: «Com a ausência da narração e sem a criação de diálogos inseridos no estilo dos autores, privava-se o ouvinte da carga ideológica, social e cultural do autor e uniformizavam-se as obras» (Street 2006: 72).

No entanto, nem sempre as réplicas primam pela naturalidade. Preocupado em condensar ao máximo as cenas mais significativas do romance, Carlos Cabral faz com que uma personagem relate uma cena passada, reconstituindo o contexto14 e citando parte do diálogo:

MISÉRIA – (…). Deito-me então à serra, junto a lenha e, quando volto, dou com o meu filho mais velho em frente ao palheiro, com um saco na cabeça a servir de capucho, para o resguardar da chuva. Capacitei-me logo que alguma coisa má teria acontecido. Ele vai ao meu encontro: «Pai, a mãe está doente!»; «Não se alevantou da cama?», pergunto eu. Que não senhor, que disse que lhe doía o peito e deitara sangue pela boca. Nem quis acreditar. «O quê! Tu viste?» Que sim senhor, que a palha tinha ficado toda suja. Entro no portal, descanso a lenha na parede da cozinha e abeiro-me da cama onde estava a mulher. Encontro-a descorada como nunca a vira: «Estás melhor?» – «Agora sinto um alívio» – «Então como foi isso?». Que não sabia, que sentira uma comichão na garganta, lhe dera uma tosse e tinha sido como se a arrebentassem por dentro. Que cuidou que se afogava. (11º episódio, pp. 1 e 2)

O grau de importância de cada personagem pode ser definido pelo número de vezes em que participa e fala nos mais de vinte episódios (v. anexo). Essa estatística permite verificar que os protagonistas são Manuel Esmeraldo, os Garipos, os Péleas e o Miséria, conforme o romance Ilhéus/Canga. Na adaptação de Judite Navarro, o João dos Lameiros goza de um protagonismo sem equivalente no roteiro de Carlos Cabral, funcionando como o camponês amigo e especial interlocutor de Manuel. Se, por um lado, podemos distinguir as personagens que pertencem ao meio urbano daquelas que vivem em meio rural, por outro, podemos considerar a relação de forças entre o universo masculino e o universo feminino. Assim, como acontece na narrativa de ficção original, as adaptações caracterizam-se pelo contraste nas atitudes das personagens: à festa sucede a melancolia, à ilusão a desilusão, à paixão o desengano e à exuberância sucede o intimismo e o recolhimento.

No romance de Bento de Gouveia, podemos ainda notar que Manuel se apresenta como o protótipo do bom rapaz de família abastada, dado à meditação e de configuração romântica, que desperta para os amores de adolescente e de estudante. Ora, na caracterização que faz da personagem principal, Judite Navarro induz o público a relacionar Manuel Esmeraldo com o topos do morgado: foi cuidado por uma criada velha e vive numa casa abastada em que se realizam jantares e serões com o padre Casimiro. Como todo o herói que se preze, Manuel tem uma personalidade extraordinária. As suas qualidades físicas e morais fazem dele o centro das atenções. Manuel gosta de partilhar o farnel com os camponeses e de lhes pagar um copo na «venda»; não tem «maus vícios» porque recusa várias vezes o cigarro oferecido. Manuel é volúvel, do ponto de vista sentimental, o que combina com a tradição romântica portuguesa. Manuel é bem-falante, quer instruir-se e tirar um curso, porque tem uma missão, a de extinguir o regime de colonia para pôr fim às desumanas condições de vida dos colonos.

Sem se afastar do perfil psicológico e social do modelo traçado pelo romancista, Carlos Cabral vai adoptar uma atitude interpretativa da obra adaptada, ao sublinhar a sua dimensão factual e autobiográfica. Reforça o elo existente entre o protagonista e o autor, ao emprestar à personagem, Manuel Esmeraldo, um dado biográfico do escritor Bento de Gouveia que não consta do romance15: «– Com efeito, [licenciei-me] em Letras, em Lisboa. Mais exactamente em Ciências Históricas e Geográficas.» (21º episódio, p. 1)

No elenco do roteiro de Judite Navarro, vamos notar algumas novidades16: a Mãe de Manuel e Catarina, a criada velha, que vêm como que «corrigir» a quase ausência do agregado familiar do herói no texto original, como forma de destacar a importância do papel da família, de acordo com a ideologia dominante na época. A isso acresce o reforço do tema da amizade sincera representado pelo Padre Casimiro, o José Maria, o João dos Lameiros, o Carlos, figura criada para este roteiro que desempenha o papel do conterrâneo de Manuel a estudar também em Lisboa, e a Ângela, «rapariga educada, viva, alegre», visitas habituais da casa dos Esmeraldos ou que o herói procura sempre que a oportunidade se lhe oferece. Deste modo, o papel de Ricardo (o pai de Manuel), do Padre Casimiro, de João Maria e de Ângela, foi redefinido, ganhando maior protagonismo. Embora com um temperamento igualmente vivo e alegre, Ângela revela ter uma psicologia mais complexa no romance, ao deixar transparecer ressentimentos em relação à rival, Cristina. Na sua adaptação, Ângela torna-se uma personagem plana, sempre positiva, bem-disposta, educada, a boa amiga que valoriza as aptidões dos próximos, como revela o episódio vinte e dois, em que salienta a qualidade dos bordados que a Maria faz (e que não consta de Canga).

Parece-nos conveniente destacar que a adaptação de Judite Navarro se inscreve no regionalismo idealista, no naturalismo rural a Júlio Dinis ou Trindade Coelho. Destaca os elementos de carácter tradicional, típico, folclórico (a música, a paisagem deslumbrante, a qualidade dos bordados, a poncha, o doce de maracujá, a posta de gaiado). No seu roteiro, a funcionar como a tradicional cena de exposição, está previsto pôr a tocar um tema musical da ilha da Madeira. O seu texto mantém a língua popular, com pronúncia madeirense, para caracterizar os camponeses, quer por estar intimamente ligado à matéria do enredo (cor local) e ao espírito da obra, quer pelo efeito dramático que dela se pode tirar (traço cómico ou comovente). Verifica-se o reforço de um naturalismo piedoso e de um moralismo pequeno burguês de que o próprio romance não é, por vezes, isento. O folhetim é assim adoçado, recuperando motivos e atmosferas do romance burguês do século XIX: aldeia bonita; sociedade patriarcal; bucolismo de bom-tom; a família Esmeraldo, exemplo de harmonia e de bons modos; a velha criada que acarinhou Manuel; o padre bonacheirão, simpático e bom conversador; Ângela, a visita assídua da casa dos Esmeraldos, boa amiga e sempre alegre; João dos Lameiros, o amigo camponês de Manuel. Nas inovações relativamente ao original, Cristina toca piano na freguesia da Ponta Delgada para a Ângela; o pai e a mãe de Manuel desempenham um papel significativo que não têm em Canga. Judite Navarro suaviza as situações mais dramáticas (a revolta do povo da Boaventura) e apaga as cenas indecorosas (referentes a acto sexual menos convencional). A «adaptadora» parece insistir em temas como o progresso e a concorrência comercial (2º episódio, p. 6) que deviam, então, estar na ordem do dia.

No seu texto adaptado, é o «Apresentador» que abre e fecha o folhetim (prólogo e epílogo), retomando o incipit e o excipit do romance. No último episódio, a aldeia está em festa: entram em cena o Chico das Vacas, o Miséria, vozes, o João dos Lameiros, o pai e a mãe de Manuel, o padre Casimiro e, finalmente, Manuel, a quem cabe conduzir o diálogo final com o João dos Lameiros, explicando-lhe a nova lei promulgada que vem por fim ao obsoleto regime de colonia.

Quanto ao elenco do teatro de Carlos Cabral, aparecem também alguns papéis que não constam da matriz ficcional: o amigo de infância de Manuel, João Perrolho, apesar de ser filho de gente humilde e de continuar a viver na terra, vai representar a camaradagem fraterna que perdura até à idade adulta, e vem a preceito a Rosária, a criada do padre, participar numa troca verbal com o vigário, permitindo a mediação das reflexões que este desenvolveu sobre a «oportunidade» do imposto ad valorem que provocou uma sublevação popular. Em consonância com o texto original, os pais de Manuel mantém-se ausentes (tirando a presença indirecta do pai, Ricardo Esmeraldo, através da carta que este lhe mandou, quando Manuel vivia em Lisboa), cabendo ao bom Padre Casimiro, figura paternalista e compreensiva, interlocutor privilegiado de Manuel na aldeia, ser a legítima voz da consciência social.

No folhetim de Carlos Cabral, Francisco Pélea torna-se num «pobre tonto», tal como no romance, mas transforma-se naquela figura saída do imaginário cultural, o velho louco e profeta, que anuncia para breve a justiça divina, enquanto no roteiro de Judite Navarro, representará o homem indignado e bravo, que ousa enfrentar o senhorio, dizendo-lhe na cara «as verdades» que os colonos teimam em calar com medo de represálias, sem lhe associar o pathos com que a personagem se apresenta na cena correspondente em Canga.

Mantendo-se o mais fiel possível à imagem que Horácio Bento dá do espaço insular, Carlos Cabral procura revelar no transcorrer do seu folhetim toda a problemática do regime agrário da colonia que o romance ilustra, encenando comentários e trocas verbais que vão definindo o colono como ser individual e como tipo social. Neste sentido, recupera o realismo em que a obra original se inscreve, ao sublinhar o dia-a-dia dos protagonistas, ao dar conta de indivíduos em circunstâncias triviais das suas existências, quer nos seus lazeres, quer nos seus afazeres, quer nos seus conflitos. Comunga com o autor da mesma aversão por todos aqueles que exploram o próximo, retratando-os desassombradamente.

É a nível da atmosfera que se notam as maiores diferenças entre a adaptação de Judite Navarro e a de Carlos Cabral: o regionalismo que este encena apresenta um realismo de pendor naturalista: evita o folclore, atenua a cor local, apaga o sotaque madeirense, mas mantém o registo popular e arcaizante na expressão oral para definir camponeses humildes: «Filho do Miséria – E adonde está a mãe?» (13º episódio, p. 1) ou «Miséria – A gente não podemos a ver?» (ibidem). Sublinha os abusos de que famílias de camponeses são vítimas: explorados, desamparados e humilhados, alguns membros vão sucumbindo ou sucumbirão à degradação física e à alienação mental, nomeadamente a mulher do Coto, a Joana Garipo e o Francisco Pélea.

Notámos, além disso, que o adaptador não se coibiu de vincar, no seu texto, um sentimento regionalista, quase militante, ao reforçar o antagonismo entre continentais e insulares17, com vista a suscitar a simpatia do auditório madeirense (os senhorios «de má morte» vieram do continente e os explorados são filhos da terra).

No último episódio do folhetim de Carlos Cabral, é conferido ao padre Casimiro, por uma provável questão prática de concisão e de verosimilhança, um papel de destaque. Neste lance, interagem apenas Manuel e o padre, a dupla intelectual da aldeia. Desenvolvem uma longa conversa, comentando a relação injusta e imoral existente entre os senhorios e os colonos. Em jeito de apelo à responsabilidade social das elites esclarecidas, afirma o padre Casimiro, a quem é dada a última palavra:

– Porque, sendo tu doutor, e filho desta terra, tens obrigação de contribuir, com o teu saber… e com a tua possível influência, para tornar menos desgraçada a vida de tantos infelizes que por cá vegetam… (21º episódio, p. 7)

Para rematar o folhetim, caberá a um locutor ler o final do romance Ilhéus. O desfecho deve ser entendido como mensagem edificante de superação. Por isso, a meio do trecho lido pelo locutor, num discurso parentético, escreve Carlos Cabral: «(sugiro que se inicie aqui um apoio musical triunfal que acompanhe a leitura até final e que substitua o habitual «separador final de episódio»)».

Considerações finais

Feita a abstracção da dinâmica sonora desse género de teatro, os textos adaptados informam sobre o modo como a fala e a sonoplastia podem inscrever-se no horizonte pragmático da escrita. Sem nos afastarmos da sua literariedade, os roteiros analisados indiciam como esta se vai moldar aos contornos de uma escuta ligada às tecnologias radiofónicas. Tal constatação leva-nos a formular as seguintes perguntas com incidência na poética da reescrita: como a escrita teatral pensa e revela a expressão radiofónica? Porque a mediatização da matéria ficcional implica recorrer ao senso comum, a estereótipos culturais, a experiências e narrativas partilhadas?

Com efeito, ao confrontar as duas adaptações do romance Canga para teatro radiofónico, verificamos que o oral fictício que Judite Navarro encena visa a respeitar a verosimilhança, a criar a ilusão de uma linguagem viva, trepidante, afectiva como a conversação. Na concepção do roteiro de Carlos Cabral, vimos que as falas podiam proceder de uma oralidade trabalhada pela escrita ou organizada como um jogo teatral que subverte a tradição literária.

Além dos códigos estéticos e ideológicos que parecem revelar o tempo e lugar de cada um dos adaptadores, a análise comparativa dos dois roteiros aponta para a tendência de a escrita teatral de expressão radiofónica se afigurar como um género crescentemente híbrido, sendo certo que esta confluência entre literatura, escrita teatral e rádio proporciona também um desafio ao talento criativo para reconfigurar uma obra de ficção, possibilitando-lhe uma multiplicidade de novas ressonâncias.

Bibliographie

Cabral, Carlos, Ilhéus, baseado no romance homónimo de Horácio Bento de Gouveia, 2007. [texto processado por computador]

Genette, Gérard, Palimpsestes, La littérature au second degré. Paris, Éditions du Seuil, 1982.

Gouveia, Horácio Bento de, Canga, com carta prefácio de Aquilino Ribeiro, introdução e estabelecimento do texto de Thierry Proença dos Santos, Funchal, Empresa Municipal «Funchal 500 Anos», 2008. [1ª ed., com o título Ilhéus, 1949]

H.S., «Que pretendem os «romances radiofónicos»?», in Comércio do Funchal, Funchal, 14-II-1971, p. 12.

Jakobson, Roman, «Aspects linguistiques de la traduction», in Essais de linguistiques générale — les fondations du langage, Paris, Les Éditions de Minuit, 1986.

Navarro, Judite, Canga, um romance de Horácio Bento de Gouveia numa adaptação livre de, 1978. [dactilografado]

Saraiva, José António e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto Editora, 1989.

Santos, Thierry Proença dos, De Ilhéus a Canga, de Horácio Bento de Gouveia

Gouveia, Horácio Bento de

Horácio Bento

: a Narrativa e as suas (Re)Escritas, dissertação de Doutoramento apresentada à Universidade da Madeira (em co-tutela com a Universidade de Paris III – Sorbonne Nouvelle), 2007. [texto processado por computador]

Street, Eduardo, O Teatro Invisível - História do Teatro Radiofónico, Lisboa, Página 4, 2006.

Notes

1 Na designação «teatro radiofónico», incluímos as duas modalidades dramatúrgicas: o «folhetim», que costumava ter na Emissora Nacional uma duração de meia hora, e a «peça de teatro», em versão integral. Retour au texte

2 H.S., «Que pretendem os «romances radiofónicos»?», Comércio do Funchal, Funchal, 14-II-1971, p. 12. Retour au texte

3 O romance Ilhéus veio a lume em 1949, com a chancela da Coimbra Editora. É reeditado pela mesma casa em 1960, com o mesmo título e uma expansão de uma dezena de páginas no final. Em 1975, faz-se uma terceira edição que apresenta um texto revisto, ampliado e com novo título: Canga. Encontrando-se há muito esgotado, o romance foi novamente editado em 2008, no âmbito das comemorações dos 500 anos do Funchal. Retour au texte

4 Esta adaptação de Canga terá sido preparada por Juvenal Xavier, jornalista madeirense, a quem coube recortar as cenas mais significativas. O trabalho de adaptação estava destinado à escritora Odette Saint-Maurice (1918-1993), da Radiodifusão Portuguesa, mas acabou por ser a escritora Judite Navarro a concretizá-la. Judite Navarro foi a romancista que, segundo António José Saraiva e Óscar Lopes, em História da Literatura Portuguesa, marcou «o início do mais recente e melhor surto do romance feminino» em Portugal, havendo nele «uma profunda simpatia pelas pessoas simples de ao pé da porta, brancos ou negros moçambicanos» (Saraiva e Lopes 16ª ed.: 1076). Foi, igualmente, uma «excelente escritora da rádio», no dizer de Eduardo Street, uma «adaptadora que marcou forte presença na Emissora Nacional», rebaptizada, depois do 25 de Abril, Radiodifusão Portuguesa. Eduardo Street descreve-a como sendo «suave na descrição das cenas, simples como os seus personagens» e nota que «as suas adaptações, simplificando as cenas, procuravam uma linguagem actualizada, acessível» (Street 2006: 148). Retour au texte

5 A primeira telenovela a passar na televisão portuguesa foi Gabriela, Cravo e Canela, baseada no romance epónimo de Jorge Amado, estreando-se a 16 de Maio de 1977. Retour au texte

6 V. nota de rodapé 3. Retour au texte

7 Além das duas adaptações para teatro radiofónico em análise, foi anunciado em 1978 um projecto de filme (previsto para a televisão e posteriormente para o cinema) elaborado ao pormenor pelo realizador José Luís Cabrita, de que a voragem do tempo fez desaparecer o guião e, em 1984, um projecto de adaptação para ópera com libretto de Ivo de Freitas, a cuja versão adiantada tivemos acesso, e música do Maestro Victor Costa. Infelizmente, estes projectos não se concretizaram por falta de financiamento. Retour au texte

8 Isto é, os melhoramentos que o colono introduz nas terras do senhorio: muros de sustentação, latadas, aquedutos, tanques, caminhos, choupana, palheiros, árvores de fruto e outras obras necessárias que as valorizem. Retour au texte

9 Nas duas edições de Ilhéus, foi atribuído às duas protagonistas nomes um tanto afectados com valor simbólico: Eglantina, a flor da roseira brava (a sugerir autenticidade, enraizamento e cautela), e Creusa, nome pertencente à esfera da Mitologia grega (a sugerir efabulação, artificialismo e cosmopolitismo). Em Canga, terceira edição do romance retocado, o autor muda-lhes o nome, em parte por uma questão de congruência, de simplificação e actualização do discurso literário. A Eglantina e a Creusa, Horácio Bento dá nova pia baptismal, passando a chamarem-se, respectivamente, Cristina e Marta, nomes de feição banal. Retour au texte

10 Situação correspondente a Canga de Horácio Bento de Gouveia: «Ao chegar à Aguagem Alta, nos limites do Passo da Areia, detiveram-se, sentados sobre as pedras do caminho. Avizinhava-se a noite. Lá de cima, a mais de trezentos metros de altitude, despenhava-se uma levada de água que, a meia altura da distância do caminho, se pulverizava e caía como se fora chuvisco persistente. § – Donde vem esta água, Manuel? – perguntou o pai de Cristina. § – Da serra.» (2008: 95) Retour au texte

11 Note-se que a supressão deste controlo caracteriza, aliás, a modernidade romanesca; lembremo-nos do romance Faux monnayeurs de André Gide ou das grandes obras de Faulkner ou de Dostoïevski. Retour au texte

12 Eis a cena correspondente no romance Canga: «E, sem que ela oferecesse qualquer resistência, o Mendes meteu a mão por entre o xaile e a blusa e, ao sentir o bico de um seio túrgido e rijo, apertou-o levemente. Maria perdia as forças. Um delíquio encegueirava-lhe a vista, as pernas tremiam, uma vibração estranha amolentava-lhe o corpo. E ela, com voz velada: § – Nã seja mau… Pode vir alguém… Cando a gente casar, Antão sim…» (2008: 64) Retour au texte

13 Cena correspondente ao seguinte passo do romance Canga: «– Este carreiro talhado na rocha, onde nos encontramos, é comum a toda a costa norte. Repara, Cristina! Os homens que o abriram limitaram-se quase a cavar uns degraus no basalto mais rijo e não se preocuparam com resguardar o viandante dos precipícios. § – Já era tempo de ser construída uma estrada que beneficiasse estas povoações do Norte – aventou Manuel.» (2008: 95) Retour au texte

14 Esta fala apresenta-se como uma transposição condensada de parte do capítulo XXII do romance (2008: 130-132). Retour au texte

15 No décimo sétimo episódio do folhetim de Judite Navarro, é referido que Manuel vai para Lisboa cursar «Filosofia e Humanidades», porque «são as disciplinas que mais [o] seduzem». Retour au texte

16 Registámos, igualmente, algumas substituições que apagam a referencialidade insular. No transcorrer dos episódios, José da Levada troca, inadvertidamente, o nome para José da Lousada (5º episódio, p. 8), o Francisco das Vacas passa aqui a chamar-se Chico das Vacas; desaparece, por exemplo, o uso do pronome sujeito «si», equivalente a um «você», característico de certo falar popular regional caído em desuso; o «violão» e o «pandeiro» tiram o lugar ao «rajão», ao «machete» e ao «brinquinho». Esta «troca» de instrumentos explica-se pela necessidade de aproximar o texto do universo referencial da audiência continental. Retour au texte

17 No roteiro de Carlos Cabral, adianta «GARIPO – (…). É família de posses, mas não são soberbos como esses senhorios de má morte que vieram do continente para explorar a gente! Os Esmeraldos nunca exploraram ninguém!» (1º episódio, p. 1). No romance de Bento de Gouveia, os senhorios têm outra origem: são «oriundos de mercadores, (…), ricos senhores de muitas terras [que] viviam com ostentação; tinham luzidia criadagem e seus palaquins e redes, quando se deslocavam para fora da aldeia.» (v. capítulo II de Canga, 2008: 36) Retour au texte

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Référence électronique

Thierry Proença dos Santos, « Canga de Horácio Bento de Gouveia – Do romance ao teatro radiofónico », Reflexos [En ligne], 1 | 2012, mis en ligne le 17 mai 2022, consulté le 19 avril 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/533

Auteur

Thierry Proença dos Santos

Professor Auxiliar

Universidade da Madeira

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