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Nota bio-bibliográfica do autor

João Esteves Pinto, nasceu no Sabugal, distrito da Guarda, em 12 de Julho de 1940, é licenciado em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa, foi, entre outras funções, Administrador da Imprensa Nacional-Casa da Moeda ; nessa qualidade, criou o DRE - Diário da República Electrónico, foi co-fundador do "Forum dos Jornais Oficiais da União Europeia", constituido sob proposta sua, ( Viena - 2004); foi, igualmente, co-fundador do"Forum das Imprensas Oficiais de Língua Portuguesa" (Brasília - 2005); publicou o livro de poemas Ficaram Pregos Pelas Paredes (Recife - 2004), tem publicados textos - prosa e verso - em revistas culturais portuguesas - Confluência, Foro das Letras e Praça Velha - e em revistas brasileiras - Continente Multicultural, Correio das Artes e Fabulação.

Antes da Noite

Aos meus amigos de infância: José Gonçalves Sapinho e sua esposa Lai

Na Rua-de-Trás voavam as vespas.

Na Rua-de-Trás fazíamos azeite com cochilhos que colhíamos nas paredes húmidas; brincávamos ao caipirra e também ao lá-vai-ursa.

Na Rua-de-Trás não havia empedrado; jogávamos ao pião.

Havia muros com os cimos quebrados junto ao lagar do senhor Benjamim.

Na Rua-de-Trás voavam as vespas e as suas asas zoavam intensas pelo tempo da vindimas; vinham atraídas pela doçura dos cachos nas carradas, mordendo e ferindo a pele brilhante das uvas que tremiam com o andar trepidante dos carros de bois. Ali montavam emboscadas como se fizessem guerrilha. Entravam pela porta do lagar donde vinha o cheiro bom, morno, estonteante do mosto nas dornas e pousavam em tudo o que fosse doce e sazonado.

Na Rua-de-Trás voavam as vespas .

Sem reis nem chefes, vadias e libertárias como nos nossos jogos; invejávamos as vespas, donas do seu destino, dispersas no seu viver, de amarelo ao sol declarado, exigentes no seu espaço de existir.

Na Rua-de-Trás não passavam as pessoas prudentes; nós brincávamos dentro das fronteiras móveis que se desenham entre a admiração e o medo.

Quando o Verão já descambava, vozeavam sobre os engaços que caíam na leva para o alambique.

Agora eu estou sentado; estou sentado atento ao silêncio.

A sombra desta parede, onde me encosto, diz do telhado derrotado nas telhas falhadas do beiral; a sombra redigiu na sua estrema uma linha irregular que vai até um pouco para lá das minhas sandálias, depois é o campo requeimado de calor . A sombra baixa as suas pálpebras para dizer da sua dormente indiferença pelo sol ; não consegue.

Eu estou sentado sobre a terra , sobre a poeira, terra dissolvida de calor.

Sabe-me bem comer o pão com o açúcar que nele se entranhou depois de demolhado num prato raso. A minha Mãe pôs-lhe açúcar amarelo por cima e os torrões dissolveram-se numa pasta uniforme; dizem que o mel faz melhor.

No inverno – como é possível imaginar agora o inverno! – na nossa rua também jogávamos à roça, com uns paus afiados, com mais de cinco palmos de comprido; atirávamo-los à vez de bico apontado á terra lamacenta para ver quem derrubava os dos demais; e o ganhador dava uma pancada nos paus derrotados para os atirar o mais longe possível. Era um jogo do tempo dos Romanos quando os seus exércitos invernavam pelas terras de Riba-Côa; alguém disse isso com a mais firme das certezas.

Ontem houve fila de racionamento junto à padaria do senhor Pires.

Mas as quadrazenhas vieram pelas casas vender pão espanhol, pão redondo muito branco, sem olhos, fendido com quatro golpes e um selo marcado no meio da côdea; algumas trouxeram também galletas e outros artigos dissimulados debaixo dos xailes e da roupa. Eu pedi ao meu Pai uma navalhinha de cinco estalos, daquelas que vinham de Fuentes d’Oñoro; ainda não foi desta.

Mas na Rua-de-Trás voavam as vespas.

Até que o Alcino, o primo do Tó, foi mordido num dia de intenso sol e de gritos irreprimidos.

Então todos nos calámos.

Calámo-nos com os olhos apreensivos, mas atentos a qualquer coisa que soubesse interrogar aquele silêncio tenso que ocupou de súbito a Rua-de-Trás.

Calámo-nos, para recolhermos acentuadas as sombras do dia, mais a ira própria de quem não aceita justificação nenhuma. E pusemo-nos logo a imaginar as coisas que se buscam antes de fazer uma guerra; coisas adequadas e urgentes.

O Raul foi colher uma palha bem miúda e rija, não muito longa para não tremer. E não houve nenhum que o não imitasse, como se uma ordem de chefia tivesse sido dada.

Fomos caçar moscas para servirem de engodo.

E cantámos então uma canção dormente, mas convicta como todas as canções de guerra. Era uma canção grave e sedutora para que pairasse pela rua a alma equívoca de um bom engano.

Com aquela melodia atraímos a atenção das vespas.

E elas vieram curiosas e atentas, com a prudência de batedores profissionais. Vieram de patas pendentes, dançando desconfiadas em torno do isco, em torno de nós, no reconhecimento ondulante da comida, zoando sons fortes aos nossos ouvidos e emoções amarelas aos nossos olhos; vieram com as suas antenas inteligentes, curvas e móveis procurando tactear intenções. Nós vagueávamos como estátuas neutras que libertavam uma música dormente, tínhamos imóveis os olhos, obedientes a uma representação hipnótica.

As vespas embeberam-se no som da música e declararam confiantes a sua fome feroz.

E, quando comiam, comiam tão intensamente concentradas que tudo o mais lhes esquecia: a desconfiança, a prudência e nós, seus inimigos jurados naquela guerra de perfídia.

Fomo-las aprisionando em buracos feitos na terra, que tapávamos com cacos de vidro. E cada uma que se dava conta de já não ter saída, sentia-se humilhada e só então ciente da derrota sofrida.

Demorou tempo a guerra. Demorou tanto quanto o necessário, como todas as guerras; porque esta guerra estava começada e era para só acabar com a morte das vespas , ou com a morte do nosso medo? - Não sei se havia alguma diferença.

Apercebemo-nos desse propósito venenoso à medida que a guerra continuava, quando não eram já uniformes as nossas opiniões.

E se alguma fugir?

Ou várias?

Ou todas?

Talvez se falasse das fugas possíveis para apagar as dúvidas de alguns de nós; ou para avaliar a razão da guerra? – É difícil responder a essas perguntas que parecem distintas, mas que se misturam e se confundem ; é que é difícil pensar sereno quando se está em guerra.

E foram diversas as nossas vozes. Mas foram em maior número as criminosas, as que temiam, as que exigiam de todo a morte.

As nossas opiniões nasciam de uma tensão em que o mais difícil já era parar; porque parar era retirar a razão de ter começado.

E o Alcino? Porra!!! - gritou o primo dele.

Matámo-las todas debaixo de um sentimento infame.

A Rua-de-Trás está deserta; eu continuo sentado nesta sombra e não estou a comer o pão. Paira agora qualquer coisa que me põe incapaz de olhar com atenção as coisas , de compor com elas o tempo presente e de fazer de maneira natural a nossa vida e as nossas histórias.

E há evocações tristes que vêm ter comigo. Lembro-me do dia em que fomos todos ao bairro de S. Sebastião, levávamos as batas lavadas e íamos em duas filas ao longo da estrada, depois da carreta com um caixão branco; ouvia-se compassado o som da campainha tocada pelo sacristão, o senhor Prior rezava alto padres-nossos e ave-marias que nós acompanhávamos; o cemitério era longe, no outro lado do outeiro: tinha morrido um colega nosso; não fora o único naquele ano.

Não estou a comer o pão, já o disse, mas a Rua-de-Trás é a nossa rua; todas as coisas que aqui estão me conhecem tão bem que não estranham ver-me aqui sentado e são elas que já adivinharam o meu desconforto e a minha decantada desolação.

Sei agora que o mal sucedido me vai acompanhar pela vida; isso eu sei. Agora eu sou uma pessoa diferente do que era e o mundo também já não pode ser igual, porque eu agora sou assim e eu sou parte do mundo, tal como esta terra, como este pó onde estou.

Sinto-me parado como a seiva daquele abrunheiro do outro lado do muro; a seiva verteu-se da ferida de um ramo numa lágrima ; secou há muito a seiva, está gretada e rija - dor parada num grito.

E digo para mim como se apenas olhasse: a minha vida está infectada, corre nela um mal como um sangue doente. Fecho os olhos porque me é insuportável fixar e dizer com o olhar aquilo que ficou irremediável , pó desta terra onde estou e que me suja num afogado desprezo.

A Rua-de-Trás está deserta.

Os cardos dos caminhos devem estar a estas horas sob o calor do sol e, eles sim, eles é que são capazes de suportar o insuportável e de desafiar o desespero com os seus agudos espinhos.

Estou sentado na terra e só.

Mas lá no fundo, na fractura do fim da rua, no espaço aberto entre dois muros, onde o chão é de pedra; nesse espaço está uma figura enigmática de mulher.

Está parada. Está parada mas atenta; parece querer interrogar os pensamentos da rua.

Hesita um instante; detém-se nesse cenário de todo imóvel. Tem o olhar desorbitado e com ele a incomodidade de quem vem espantar as certezas destas pedras, deste sol, destas sombras.

Avança; é magra, a saia quebra-se-lhe nos quadris sem jeito; as mãos sacodem uma quarta de medir pão .

- Espantalho articulado de mulher.

- Pita! Pita! Pita!

- Pita preta! Pita preta! Pita preta!!

- Piu! Piu! Piu!

- Piu! Piu! Piu!

É a doida, é a T’Zabel.

- Pita! Pita! Pita!

Sacode a quarta; grãos de milho saltam sonoros na madeira.

- Piu! Piu! Piu!

- Piu! Piu! Piu!

- Galinha! Galinha! Galinha!

A boca faz moafas; um dente evidencia-se só na falta dos demais.

- Viste a minha pita preta?

- Nada não.

- Pita! Pita! pita!

- Piu! Piu!Piu!

- Onde é que se meteu a puta?!

- Eu a dar-lhe grão e couves e ela a por os ovos sei lá onde?!

- Outros a comê-los e eu a padecer fome, carago!

- Meto-te a faca!

- Piiiita!!!! Pita! Pita!

As alpargatas deixam no chão um rasto liso, sem a curva dos pés.

- Piiiita!! Pita! Pita!

O vulto negro da doida vai-se reduzindo no outro extremo da rua e com ele a sua voz gritada, clamante, e também o som dos grãos que saltam na quarta de madeira.

Nada.

As pedras, o sol e as sombras apagam da doida a sua passagem breve, reafirmam os seus espaços de evidência e estão já estáveis nos seus lugares; mas sinto que todos eles têm a força própria de quem tem consigo uma mão fechada, um nó, um propósito mudo ou uma crispação.

E uma estabilidade tensa nunca é estável, nunca. Tanto mais que não cessa de se ouvir por todo o lado o som intenso das cigarras. Talvez seja ele que faz vibrar o calor na superfície das coisas distantes.

O ar está saturado desse som de fúria contínua que dissimula na sua intensa monotonia o sítio da sua fonte; esse som monótono é uma opressiva técnica de dispersão. Mas eu não quero pensar em nada, absolutamente nada, só quero ouvir e ver como se as coisas me levassem pela mão e eu fizesse parte das pedras e dos sons e me diluísse neles e de maneira confusa me esquecesse de mim. - Desejo que assim seja, som das cigarras com uma fúria febril!.

Mas o tempo nunca para; nunca para o tempo. Sombras oblíquas desceram sobre a rua.

Que outro mundo há para lá dos montes? Que outro mundo há muito para lá da raia onde dizem que ainda há guerra?

E como é que coisas que já não existem podem impedir a paz para deixarem dela apenas uma aparência, um estranho cenário?

O portão da parede à minha frente é feito de tábuas degradadas; tem em baixo um buraco gateiro . O portão nunca foi pintado, as suas tábuas de castanho têm falhas, dizem de muitas maneiras que o tempo com todas as suas variações foi o seu contínuo companheiro, sabem narrar melhor do que todas as palavras as histórias da rua; os nós marcam redemoinhos de dureza na madeira e ajudam a reconhecê-lo tal como um sinal na cara de uma pessoa. Nunca o vi aberto; de certeza que iria ranger e rasparia pela pedra da soleira se alguém tentasse fazê-lo.

Porque é que um momento mau, insuportavelmente mau, pode ficar tal como uma moeda com os seus definitivos sinais?

O portão à minha frente.

Olha!

O portão à minha frente.

No buraco gateiro espreitou a cabeça de uma galinha. Espreitou e anunciou uma voz de galinha choca; ela esgueirou-se e saiu para a rua, marca a sua presença com uma voz grave , pausada, com os passos seguros de quem sabe pisar e anunciar um estatuto.

Olha!

Um pintainho sai também e outros mais, muitos, como se a maravilha fluisse num istmo de ampulheta; ouve-se o pipilar de todos e a voz pausada da galinha choca.

– Olha a galinha preta e os ovos que não foram roubados!

Matrona atenta dá duas rascanhadas com as patas sobre a terra à cata de comida, os filhos rodeiam-na; olha para mim com a voz rouca a anunciar-se.

Atiro-lhe o pão que estou a comer.

Atiro-lhe o pão para que figuremos todos, talvez, num enredo possível e bom, aceite como peça teatral feita de um só acto e de um só gesto, mas nem por isso diminuída da solenidade mágica deste instante.

A galinha debica o pão numa gula, os pintainhos ensaiam lições de existência e comem para mim o doce pão de um sonho possível.

E eu, se fosse capaz, desejava gritar como se falasse comigo num absoluto silêncio:

Venha T’Zabel! Venha, que estou para aqui a olhar as coisas mas não suporto olhar para mim. Venha ver este milagre e sinta-se feliz! E depois diga-me a mim, diga-me com os seus olhos desorbitados para que eu acredite, que no mal também pode nascer uma esperança com a força de uma nova natureza e que até eu me posso redimir!

Venha que eu estou minguado de palavras e só!

Venha T’Zabel

Venha antes da noite.

Sou eu que lhe peço!!

ADMMX

Citer cet article

Référence électronique

João Esteves Pinto, « Antes da noite », Reflexos [En ligne], 1 | 2012, mis en ligne le 18 mai 2022, consulté le 16 avril 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/594

Auteur

João Esteves Pinto

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