A chave de casa: histórias de imigração na ficção de Tatiana Salem Levy

Résumé

Um dos temas abordados no romance A chave de casa, de Tatiana Salem Levy, publicado em 2007, tem a ver com a imigração, matéria que, juntamente com o tema do exílio político e da fragilidade do sujeito no seu momento histórico, ganha contornos bem determinados na primeira obra ficcional da autora. Este trabalho pretende mostrar como a memória e os afectos actualizam o tema da imigração na estrutura fragmentada do romance e na figuração in progress da protagonista, através da escrita e da viagem como formas efectivas de reconstrução interior.

Plan

Texte

A acreditar-se nos historiadores ibéricos, sejam espanhóis, sejam portugueses, a descoberta das Américas pelos Turcos, que não são turcos coisíssima nenhuma, são árabes de boa cepa, deu-se com grande atraso, em época relativamente recente, no século passado, não antes. (...)

Os primeiros a chegar do Oriente Médio traziam papéis do Império Otomano, motivo por que até nos dias actuais são rotulados de turcos, a boa nação turca, uma das muitas que amalgamadas compuseram e compõem a nação brasileira.

Jorge Amado, A descoberta da América pelos Turcos, Europa-América, 1994, 21 e 26.

A descoberta da América pelos turcos

O início da pequena novela de Jorge Amado, A descoberta da América pelos Turcos (ou De como o árabe Jamil Bichara, desbravador de florestas, de visita à cidade de Itabuna para dar abasto ao corpo, ali lhe ofereceram fortuna e casamento ou ainda Os esponsais de Adma) levanta uma questão importante para este trabalho que tem a ver com a emigração turca e o facto de com os turcos terem sido vulgarmente confundidos os árabes, sobretudo sírios e libaneses1. Com efeito, não foi por acaso que o escritor baiano ocupou quase todo o primeiro curto capítulo da novela com abundantes referências a esta confusão de origens que acabou por se instituir como definição metonímica. A observação desta «amálgama» ganha contornos de fino humor que se vão repetindo ao longo de Os esponsais de Adma: «Em tudo diferentes um do outro, nada conseguia turvar a amizade dos dois turcos, o sírio e o libanês – eram de nacionalidades fraternas e inimigas»2.

A leitura destas considerações «turcas» de Jorge Amado no início deste trabalho, para além da questão levantada, serve para introduzir um dos veios temáticos fundamentais do romance A Chave de Casa, de Tatiana Salem Levy, publicado em Portugal pela Cotovia em 2007. O tema da imigração turca no Brasil implica ter em conta a própria biografia da autora, descendente de antigos judeus turcos3 e nascida em Lisboa, em 1979, quando, em tempos de repressão política, a família estava exilada em Portugal.

A construção do romance, complexa nos fios que a tecem e na sua organização formal, recupera as memórias de família, incorporando-as na figuração da protagonista e no seu percurso de reidentificação, qual outra questing journey onde a viagem se entrelaça com o «conhecimento de si mesmo». É de realçar que a história de emigração se desenvolve paralelamente a outros fios de igual importância, como é o caso da história da perseguição e do exílio provocados pelo regime de ditadura política, a história de extrema violência na relação amorosa, contrapondo-se à descoberta do «amor», os planos da escrita e da viagem, enquanto contrapontos eficazes para um conjunto de memórias herdadas e vividas, capazes de paralisar o sujeito, narrador e protagonista.

A interligação entre os diversos planos temáticos depende de uma estrutura fragmentada, um dos sinais da evidente ruptura do próprio enunciado enquanto reflexo de uma mundivência específica4, mas também de um processo de reconstrução, apoiado nas intermitências da memória e dos afectos centradas na figura omnipresente do narrador-protagonista. Este processo de autoficção5 impõe uma circularidade na construção do texto6 que ao mesmo tempo individualiza as experiências e as convoca a todo o momento para a construção de sentidos mais alargados. Por outro lado, a impossibilidade de nomeação do fragmento na organização geral do romance e o entrelaçamento das «estórias», ou seja, a tessitura narrativa7, desenham um movimento que condiciona a leitura, acrescentando sempre, até ao final do romance, outra nuance, outra possibilidade de interpretação8.

Tendo em conta estes aspectos, e apesar da manipulação temporal dos fragmentos que constituem os múltiplos capítulos de A chave de casa, é possível perceber dois momentos essenciais que definem o fio temático da emigração a partir do ponto de vista da narradora-protagonista: por um lado, e num tempo anterior, a história do avô, a imigração a partir de Esmirna, a cidade turca de origem, e a construção de uma nova vida no Brasil9; por outro lado, num tempo posterior, o regresso da protagonista, a neta, à Turquia, levando consigo a «chave de casa».

De Esmirna para o Rio de Janeiro

A arrumação narrativa de A chave de casa é um dos aspectos mais particulares deste romance. Os capítulos, não numerados, tomam a forma de fragmento e, como tal, para além da dimensão variável, de várias páginas a uma linha, implicam uma estratégia de leitura que obriga a uma atenção redobrada. Com efeito, longe de apresentar o enredo pela sequência lógica dos acontecimentos, o narrador constrói o universo narrativo como um puzzle, fragmento a fragmento, subvertendo a todo o momento a linha temporal. Esta construção segmentada, para além de situar a produção narrativa de Tatiana Salem Levy numa linha pós-moderna, longe do mimetismo realista, apresenta também uma eficaz adequação à matéria narrativa10. Com efeito, se considerarmos a decisão de escrever e de fazer a viagem a Istambul e a Lisboa como ponto de partida da narrativa, rompendo definitivamente um «estado de pedra», a metade da narrativa que sobra recorre a um discurso de memória e analepse, capaz de recuperar a herança colectiva da família11, feita de dor, perda e morte, e de conjugá-la com a sua própria experiência de pesada violência. A ambos, à herança e à experiência pessoal, a narradora atribui o estado de paralisia, física e emocional, a que chegou, como afirma logo desde o primeiro fragmento do romance, referindo «um peso que carrego nas costas», «um peso que não é de todo meu», «como se toda a vez que digo ‘eu’ estivesse dizendo ‘nós’», «uma herança que trago comigo e da qual quero me livrar»12 (pp. 11-12). Este estado de «musgo» é descrito num fragmento posterior de uma forma «cruamente» visual que acentua o completo entorpecimento que serve de ponto de partida para um procedimento baseado em duas motivações: contar as memórias e ir ao encontro das memórias, tecendo sobre elas uma reescrita pessoal e revivificante.

Nas paredes do quarto, apenas musgo. Um cheiro fétido de coisas guardadas. Objectos esverdeados pelo mofo. Tudo já degradado, tudo velho, antes mesmo do tempo. No centro do quarto, a minha cama. De madeira apodrecida, nem sei como ainda se mantém de pé. No centro da cama o meu corpo. Dilacerado, aberto por feridas em carne viva. Repleto de nódoas roxas amarelas. De furúnculos. Meu corpo carcomido pela ancestralidade do quarto. Impossibilitado de se movimentar. No centro do corpo, a máquina de escrever. O teclado quase todo apagado, a tinta por acabar. Minhas mãos enxovalhadas pelo sangue seco teclam, uma a uma, as letras do que escrevo. (p. 45)

Se a memória recebida em herança é um motivo «pesado», acaba por se constituir também, e apesar disso, como motivação para quebrar esse mesmo estado de «peso». A presença da mãe, com quem mantém um diálogo constante que perdura para além da morte, incentiva a viagem: «Você não imagina o alívio que acabo de sentir. Há quanto tempo está esparramada nessa cama, inamovível? Há quanto tempo lhe peço para se levantar?» (p. 13). A esta voz junta-se a figura do avô, desafiando a neta a encontrar o seu próprio caminho, a vencer-se a si mesma:

Sem me levantar, pego a caixinha na mesa-de-cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave que ganhei do meu avô. Tome, ele disse, essa é a chave da casa onde morei na Turquia. Olhei-o com expressão de desentendimento. Agora, deitada na cama com a chave nas mãos, sozinha, continuo sem entender. E o que vou fazer com ela? Você é quem sabe, ele respondeu, como se não tivesse nada a ver com isso. As pessoas vão ficando velhas e, com medo da morte, passam aos outros aquilo que deveriam ter feito mas, por razões diversas, não fizeram.

E agora cabe a mim inventar que destino dar a essa chave, se não quiser passá-la adiante. (pp. 14-15)

Esta chave, justificando o título alegórico do romance, enquanto figuração de uma «demanda» levada a cabo pela protagonista, também já se tornara simbólica para o avô. Com efeito, a chave tornou-se o único objecto que sobrou das suas próprias memórias, perdidas no tempo antes da imigração para o Brasil. Não havendo sentido no seu regresso, porque a chave deixou de ter porta e casa para abrir, substituída por outras chaves, portas e casas, por uma nova vida num espaço diferente, a intenção do avô é evidente: que a neta rompa o círculo em que se encerrou, que rompa com a memória dos «outros», que construa a sua própria cadeia memorativa, que construa a sua casa com portas para abrir (mais um sentido para a «chave») com a mesma determinação com que o avô deixou as terras de Esmirna para «descobrir a América».

O primeiro fragmento sobre a vinda do avô para o Brasil constitui uma reflexão que coloca em campo os dois aspectos essenciais: por um lado, o contorno da imigração do avô e depois do resto da família; por outro lado, a visão da neta sobre esse movimento drástico, ainda incapaz de estabelecer uma relação de integração válida, de tácito entendimento, com o percurso do avô.

Não faço outra coisa senão olhar, tocar, observar a chave. Conheço seus detalhes de cor, o tamanho preciso de suas curvas e de sua argola, seu peso, sua cor gasta. (...) Que coisa estranha, que coisa esquisita deve ser: largar o país, a língua, abandonar a família em direção a algo completamente novo e, sobretudo, incerto.

Ele me contou que o navio onde viajou era descomunal, seu primeiro e único navio. A embarcação estava abarrotada de pessoas, todas com a mesma esperança que ele: conseguir vida melhor em país diferente. Dos irmãos, foi o primeiro a vir, apenas duas malas na mão e alguns contatos no Brasil. Não tinha mais do que vinte anos quando deixou a Turquia. Tempos depois seu irmão mais novo se juntaria a ele. Sua irmã gêmea faleceria de tuberculose. Seu irmão mais velho casaria e continuaria em Esmirna. Sua mãe, ele só reencontraria longos anos mais tarde, quando, viúva, decidira se mudar para o Brasil.

Quantas vezes não ouvi essa mesma história? A dor de nunca mais ter visto o pai nem a irmã, de nunca mais ter pisado na terra que primeiro fora sua. A dor de só ter trazido a mãe a tempo de perdê-la. De ter visto tanta miséria no navio, tanta miséria na terra que deixara. Quantas vezes? (pp. 18-19)

A citação contém um resumo da matéria dos fragmentos sobre a história do avô. De forma intercalada com a história da mãe e as suas próprias recordações, os capítulos tornam-se mais longos, com pormenores da despedida da família (pp. 21-23). No fragmento que descreve a viagem, também se fala do seu estado de espírito («na verdade, não estava motivado para começar uma vida nova tão distante das suas raízes» p. 39), e da triste história de amor com a Rosa, filha do patrão, que, mais do que procurar nova vida, o levou a deixar a Turquia13. Depois que chegou, o corte foi total: «se não deixasse para trás tudo o que havia sido seu até então, estaria para sempre amarrado ao passado» (p. 46). Mas a distância não impedia que as notícias da Turquia o paralisassem de quando em quando: a morte de Rosa14 (pp. 56-57, 70-72), a morte da irmã (pp. 81-84), contada por carta do irmão Sabi15, a vinda do irmão para o Brasil (pp. 92-94), o casamento com Hilda e o crescimento da família (pp. 113-116), o desgosto com a morte do seu primeiro filho homem (pp. 115-116), o regresso do exílio da filha, mãe da protagonista (pp. 194-196).

A narrativa da história do avô é intensa, feita de afectos, tão forte como a própria personagem. A mudança de espaço, a dor, a conquista de novos mundos, a determinação e o «descarinho» («que é a palavra deles para exprimir saudades», p. 71), são aspectos fundamentais neste desenho da imigração, não só turca, enquanto processo ambivalente entre a perda e a construção.

A semelhança entre avô e neta torna-se cada vez mais evidente, sobretudo na forma apaixonada como reagem aos acontecimentos, como sucumbem, paralisam, e sofrem nos momentos de perda mais significativa. A sua relação tornou-se mais forte, a suas histórias interdependentes, uma como herança, a outra como cumprimento de um destino diferente.

[A história não é só dele, a vida nunca é de uma única pessoa. Se lhe entregou a chave, é porque acredita que ela faça parte da sua história. Você conhece o meu pai: nada para ele é sem razão. Ele poderia ter dado essa chave a mim ou a um dos meus irmãos, mas nunca o fez. (...) Acredite nessa história que seu avô lhe oferece: vá em busca de sua casa e tente abrir a porta. Reconte a história de seu avô, reconte a minha também: conte-as você mesma. Não tenha medo de nos trair. (p. 20)

As histórias do avô e da mãe ganham uma importância fundamental enquanto lastro na construção da protagonista, revelando a sua dupla posição que se revela ao longo dos fragmentos, ou seja, desde a acusação de pesada herança de dor16 até à memória e ao desafio, capazes de motivar a reconstrução anterior17.

A chave de casa

A escrita e a viagem marcam uma segunda etapa da narrativa, e ganham mais sentido quando se entrelaçam com os fragmentos das histórias herdadas. A escrita é uma das etapas num processo de reconstrução sentido como necessário e urgente, «ou então serei capturada pelo olhar de Medusa e me tornarei pedra, lançada ao mar» (p. 12), surgindo ainda como cumprimento de um espaço de utopia, ao mesmo nível do «príncipe encantado»: «Meu sonho, mãe, é escrever. [Escrever?] É, tenho esse sonho impossível: escrever escrever escrever» (p. 112). O movimento, manifesto na viagem, é uma etapa complementar:

No entanto, as palavras ainda me escapam, a história ainda não existe. Enquanto os músculos pesam e permanecem, o sentido se esvai. Quem sabe aos poucos, quando conseguir dar os primeiros passos, quando me conseguir libertar do fardo, não consiga também dar nome às coisas? E por isso, só por isso escrevo. (p. 12)

Viajar e escrever são, desta forma, movimentos cruzados, mas interdependentes no modo como possibilitam uma reconstrução da identidade. Quanto à viagem, a sua aceitação por parte da protagonista não é pacífica, e um dos primeiros fragmentos, para além de relacioná-la com a escrita, constitui um exercício de discussão, avaliação e justificação:

Para escrever esta história, tenho de sair de onde estou, fazer uma longa viagem por lugares que não conheço, terras onde nunca pisei. (...) Não tenho a mais ínfima idéia do que aguarda nesse caminho que escolhi. Da mesma forma, não sei se faço a coisa certa. Muito menos se existe alguma lógica, alguma explicação admissível para essa empreitada. Mas ando em busca de um sentido, de um nome, de um corpo. E por isso farei essa viagem de volta, para ver se não os esqueci por aí, em algum lugar ignoto. (p. 14)

Esta consciência de reidentificação, de algum tipo de redenção associada à viagem, é repetida ao longo do romance. O primeiro fragmento da viagem («Eu estava com a passagem nas mãos e tinha poucos dias para arrumar a mala», p. 30) dá conta da ansiedade e, mais uma vez, do papel do avô na decisão tomada18.

Depois da chegada a Istambul (no fragmento da p. 41), a narrativa da estadia da protagonista oscila entre a fruição e a descrição próxima de um turista e o esforço para se colocar no espaço da cidade e sentir como se fizesse parte da sua cultura e da sua história. Mas depressa se impõe a conclusão: «Definitivamente não sou turca» (p. 41), descrevendo de forma irónica o que seria o itinerário de um turista comum em Istambul (p. 47). Precisou de visto para entrar no país, não falava a língua, mas, como lhe disse o taxista, «tenho cara de turca, não serei uma turista qualquer» (p. 49).

Os fragmentos dedicados à visita a Istambul alongam-se por várias páginas. A primeira visita passou pela Mesquita Azul (pp. 58-62), onde «o espanto é inevitável» (p. 58), e facilmente a protagonista denuncia a sua origem estrangeira: «Cometo todas as gafes que um habitante local jamais cometeria. Tenho vergonha de mim mesma. Não quero estar à parte, mas tenho a sensação de que é isso o que acontece» (p. 60). Apesar desta impressão, sai da mesquita «em estado de encantamento» e quando o almuadem chama para a oração, num gemido que se expande por toda a cidade, o encontro acontece: «sinto que há em mim algo muito antigo que começa a renascer» (p. 62).

Alguns fragmentos são mais curtos, contendo pequenos apontamentos sobre as portas de madeira trabalhadas (p. 68) e o comércio nas ruas (p. 91). Mais demorada é a narrativa da visita aos banhos (pp. 97-103), que se apresenta como se se tratasse de um ritual de iniciação. Os banhos, as massagens, os corpos despidos criam um espaço de intimidade que é também um espaço de meditação e interrogação: «Parece que quanto mais me aproximo dos fatos, mais me afasto da verdade» (p. 103)19. A visita ao bazar, comprando vidros, vendo as especiarias e as joias, foi outra etapa cumprida (pp. 119-122).

Para além da «chave de casa», ela levava com ela também dois nomes apontados, com um sobrenome igual ao seu (que aliás nunca é nomeado, nem sequer o primeiro nome), e partiu para Esmirna (pp. 126-127). Uma procura na lista telefónica revelou-se eficaz (pp. 132-133, pp. 141-143), e conseguiu contactar com os parentes que tinha na cidade de origem do avô. Passeando pela cidade, procura a cidade da sua família (p. 158), jantou com o avô de Raphael e foi-se apercebendo de afinidades. É durante o jantar que ela fica a saber que a casa já não existe, como é contado num breve fragmento colocado posteriormente20:

Todos repousaram o garfo no prato e olharam na minha direção quando perguntei: a casa do meu avô ainda existe? Raphael titubeou, depois erguei a cabeça e, sem pestanejar, respondeu: não. Quando sua bisavó se mudou para o Brasil, deixou a casa vazia. Ela ficou abandonada durante muitos anos e depois acabou sendo destruída. Você queria conhecê-la?, ele perguntou. Contei-lhe então que meu avô tinha me dado a chave para tentar abrir a porta da sua antiga casa. Ele me olhou com ar desconfiado: seu avô não sabia que a casa tinha sido destruída? Pega de surpresa, gaguejei e, vacilando, disse: acho que não. Mas saí de lá com a pulga atrás da orelha. (p. 169)

A falta de casa para abrir com a chave apressou a partida da protagonista. A primeira parte da viagem estava cumprida. Faltava Lisboa21. O último fragmento do romance termina, contudo, com a história do avô e da chave, como um ciclo que se fecha, de entendimentos e cumplicidades:

Sem me levantar, pego a caixinha na mesa de cabeceira. Dentro dela, em meio a pó, bilhetes velhos, moedas e brincos, descansa a chave. Ele estica o olhar e vê o mesmo que eu. Ele me encara, e já não preciso dizer nada. Pego a chave, assopro a poeira em que está mergulhada e, esticando o braço, alcanço a mão do meu avô. Seguro-a com força, e permanecemos com as mãos coladas, a chave entre nosso suor, selando e separando as nossas histórias. (p. 213)

Depois da sombra, o estado luminoso

A «descoberta da América pelos turcos», colhida em Jorge Amado, podia ser também o título para a história do «avô», se bem que em latitude diferente das terras baianas e apesar de perspectivas e motivações também diferentes para diferentes categorias de imigrantes, como eram os sírios e os libaneses, por um lado, e os judeus turcos, por outro. Por entre o discurso parcial da protagonista-narradora, não bastando a manipulação provocada pela tessitura fragmentária, cuja fiabilidade é a todo o tempo contestada pela voz tendencialmente imparcial e motivadora da «mãe», o percurso da imigração ficou desenhado, com traços largos, intensos e emotivos. Esta intensidade fez com que a figura do imigrante fosse muito além do processo da imigração, enquanto facto histórico, delimitável como campo de estudo.

Já a «descoberta da Turquia pelos brasileiros», título que me veio à ideia e que poderia indiciar um movimento inverso, recíproco, não pode ser utilizado com propriedade. A viagem da «neta» à Turquia instaura-se como processo, como metamorfose, fazendo com que o sujeito adquira uma consciência do espaço que corresponde a um evidente processo de redescoberta e amadurecimento interior. Este «mal de arquivo»22, esta inquietação constante com o regresso à origem, sofre, contudo, alguma subversão em A chave de casa, pois parece passar para segundo plano. Com efeito, neste caso, o necessário impulso para quebrar a rotina, a incapacidade de movimento, o estado pétreo provocado pela dor e pela memória, veio dos laços de afecto, das mesmas memórias que se soltaram da dor inerte que as prendia, e do amor. Compõe-se a tríade definidora da personagem principal de A Chave de casa, e que orienta o itinerário do romance: a escrita, a viagem, o amor.

Foi em Lisboa que a metamorfose se completou. Se o contar da dor se alongou até às últimas páginas, por entre fragmentos longos e breves, o «estado de luz» instalou-se rapidamente, inesperado e natural. Tendo em conta o estado de «musgo», provocado pela dor e pelo medo23, Lisboa representa o cumprimento de um processo de «redenção», apoiado na pacificação interior e na vontade de aceitação do que traz os dias, sem projectar neles a ansiedade do futuro.

Vim a Portugal descobrir minhas origens e o que descobri foi outra coisa: não tenhas medo da palavra amor. Ele me disse isso com os olhos verdes quase a arder os meus, disse-me a palavra amor mesmo sabendo que não me amava (ainda), e o amor ficou ecoando no quarto, ressoando, ressoando. Quis segurar a frase, prender os sons entre os braços. Não sei se algum dia tive medo do amor, mas a palavra assim, solta no quarto, nunca ouvira nada tão doce. Não tenhas medo da palavra amor.
Não, não tenho medo. (p. 187)

A descrição do encontro e do enamoramento foi rápida e o regresso ao Brasil foi feito em «paz», como fim de uma peregrinação pelas histórias e pelas memórias dos outros, mas sobretudo como revisitação da sua própria história, como reavaliação da sua própria dor e dos seus medos. As cores quentes da Turquia, a luz clara de Lisboa, abriram os horizontes que tinham ficado fechados, enleados nos labirintos da obsessão.

Torna-se difícil fugir a uma leitura temática de A chave de casa24. Com efeito, o título remete para um único objecto que, ao longo do romance, perdeu e ganhou sentido. Destruída a casa, não havendo porta, a chave tornou-se inútil. Esgotou-se o sentido literal, apesar de ter cumprido a função que lhe estava destinada, adivinhada nas palavras do avô. Mas a chave ganhou outras projecções semânticas, de carácter alegórico, tornando-se símbolo da capacidade de recuperação depois da dor («Como é cruel (e bonito) que a vida continue depois de você», p. 188), da vontade de descobrir caminhos próprios, abrir novas perspectivas, mesmo que as portas velhas e antigas tivessem desaparecido.

Por outro lado, a «chave» também se torna símbolo da própria história do avô, fragmentada pelo discurso entrecortado da memória, e do processo de imigração. Guardada até àquela altura, destruída a porta que poderia abrir, representa uma impossibilidade de retorno físico às origens, um movimento muito particular onde se equacionam perdas e ganhos.

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Notes

1 Jorge Amado, A descoberta da América pelos Turcos, Mem Martins, Europa-América, 1994: «Vindos de distintas plagas, sertanejos, sergipanos, judeus, turcos – dizia-se turcos, eram árabes, sírios e libaneses -, todos eles brasileiros», p. 27. Retour au texte

2 Jorge Amado, A descoberta da América pelos Turcos, p. 33. Retour au texte

3 Eurídice Figueiredo, «A herança judaica em Tatiana Salem levy e Régine Robin», Conexão Letras, 6. Literaturas das Américas: entre memórias e esquecimento, Porto Alegre, UFRGS / Programa de Pós-Graduação em Letras, pp. 29-40; Tatiana Salem Levy, Do diário à ficção: um projeto de tese / romance. Retour au texte

4 R. Ripoll, «Vers une pataphysique de l’écriture fragmentaire», Forma Breve 4, Revista de Literatura. O Fragmento, Aveiro, 2006, pp. 11-22; L’écriture fragmentaire, théories et pratiques, Perpignan, PUP. 2002. Retour au texte

5 R. Ripoll, «Vers une pataphysique de l’écriture fragmentaire», Forma Breve 4, Revista de Literatura. O Fragmento, Aveiro, 2006, pp. 11-22. Retour au texte

6 Camelia Elias, «Unbeginnings: The Fragment as a Round Space», Forma Breve 4, Revista de Literatura. O Fragmento, Aveiro, 2006, pp. 23-34. Retour au texte

7 Ana Paula Arnaut, «O todo e a(s) parte(s): o prazer do fragmento», Forma Breve 4. Revista de Literatura. O Fragmento, Aveiro, 2006, pp. 217-228. Retour au texte

8 A formação académica de Tatiana Salem Levy, que conduziu à produção deste seu primeiro romance, é fundamental, e muito importam as leituras sobre o «fazer literário» de Maurice Blanchot, sobretudo sobre o conceito do «fora como o (não-)espaço da literatura», retomado por Foucault e Deleuze. Conferir Tatiana Salem Levy, «O fora como o (não-)espaço da literatura». Retour au texte

9 Sobre a memória e a escrita como marcas do povo judeu, vista sob a perspectiva de A chave de casa, conferir Jessica Sabrina de Oliveira Menezes, «Memória e escrita: a dupla marca do povo judeu, em A chave de casa, de Tatiana Salem Levy», Vértices, 12, 2012. Retour au texte

10 Sobre a dissolução da cronologia lógica tradicional conferir Anatol Rosenfeld, Reflexões sobre o romance moderno, São Paulo, Perspectiva, 1996, p. 83. Retour au texte

11 Tendo em conta que «a vida nunca é de uma só pessoa» (p. 18), estes arquivos da memória não são apenas individuais mas colectivos. Sobre este conceito de «memória colectiva» conferir Maurice Halbwachs, A memória coletiva, São Paulo, Centauro, 2006. Retour au texte

12 Tatiana Salem Levy, A chave de casa, Cotovia, Lisboa, 2007. O número das páginas citadas está colocado no texto a seguir à respectiva citação. Retour au texte

13 «Vida melhor sempre se pode conseguir onde se está, mas fugir não, para isso é preciso pegar um navio, ir para bem longe, principalmente se for de um grande amor, impossível de tão grande, como era o seu», p. 39. Retour au texte

14 «Seu corpo paralisou, não conseguia se mexer, o coração querendo atravessar a garganta, o medo da resposta tomando conta do corpo petrificado. (...) Arrependia-se: nunca deveria ter vindo ao Brasil. Arrependia-se: deveria tê-la trazido consigo», p. 57. Retour au texte

15 «Rasgou o envelope numa pressa afobada, pressentindo que dentro dele não haveria palavras menos dolorosas do que as da morte de Rosa», p. 82. Retour au texte

16 «Tenho em mim o silêncio e a solidão de uma família inteira, de gerações e gerações. Como se toda a alegria que cada um viveu fosse se desprendendo leve no ar e ficasse apenas a tristeza. E como se essa tristeza fosse se acumulando, se acumulando até chegar a mim. Eu sou o resultado das dores de toda uma família», p. 110. Retour au texte

17 Este procedimento de regressar para enterrar as memórias herdadas é referido por Tatiana Salém Levy em Do diário à ficção: um projeto de tese / romance. Retour au texte

18 «Nunca tinha viajado assim antes, com um objectivo a ser cumprido, mas depois de ouvir meu avô e pensar com meus botões, acabei decidindo encarar o desafio. Mal ou bem, era uma possibilidade de encontrar algum sentido para as minhas dores e tentar me desfazer delas. Queria voltar a andar, encontrar o meu caminho. E me parecia lógico que se refizesse, no sentido inverso, o trajeto dos meus antepassados, ficaria livre para encontrar o meu», p. 30. Retour au texte

19 Eurídice Figueiredo considera esta descrição do banho turno como uma cena central do romance, onde a protagonista reconhece a sua alteridade, em «A herança judaica em Tatiana Salem levy e Régine Robin», Conexão Letras, 6. Literaturas das Américas: entre memórias e esquecimento, Porto Alegre, UFRGS / Programa de Pós-Graduação em Letras, p. 39. Retour au texte

20 Quando se despedem, surge o convite para conhecer o bairro do avô: «A casa não está mais lá, foi destruída há cerca de quinze anos, mas ainda há outras muito parecidas, construídas na mesma época, no mesmo estilo. Tiro a chave do bolso, seguro-a, observo-a e penso que se já não há mais casa, não tenho motivo para continuar a viagem», p. 165. Retour au texte

21 «Não tenho mais o que fazer na Turquia e quero ainda ir a Portugal, onde não há parentes nem casa para procurar. De qualquer maneira, é o país de onde veio a minha família e também onde nasci. Eu tinha nove meses quando saí de lá, nos braços da minha mãe. Certamente, o tempo foi curto, não tive tempo de formar lembranças, mas ainda assim acredito que possa encontrar em Lisboa alguns sentidos para o meu corpo, a minha história», p. 177. Retour au texte

22 Jacques Derrida, Mal de arquivo. Uma impressão freudiana, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. Retour au texte

23 «Tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo de ser feliz quero ser feliz tenho medo», p. 163. Retour au texte

24 Sobre as possibilidades de leitura temática, e alegórica: Paul de Man, Alegorías de la lectura: Lenguaje figurado en Rousseau, Nietzsche, Rilke y Proust, Barcelona, Editorial Lumen, 1990; Northrop Frye, Anatomia da crítica, trad. de Péricles Eugênio da Silva Ramos, São Paulo, Cultrix, s.d. [1957]; Sara Augusto, A alegoria na ficção romanesca do maneirismo e do barroco, Lisboa, FCG / FCT, 2010. Retour au texte

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Sara Augusto, « A chave de casa: histórias de imigração na ficção de Tatiana Salem Levy », Reflexos [En ligne], 2 | 2014, mis en ligne le 18 mai 2022, consulté le 29 mars 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/673

Auteur

Sara Augusto

Centro de Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra

sara.augusto@fl.uc.pt

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