Conceição Lima: a poética cartografia que contesta a resignação e o silêncio

Résumé

No arquipélago de São Tomé e Príncipe, por meio das diásporas ocorridas, notadamente, no século XIX, com a introdução das culturas de café e de cacau «novos» atores sociais entraram em cena. Sempre em interação com a natureza, esses indivíduos foram responsáveis pela construção dos espaços sociais. No entanto, no espaço das relações de poder, eles ficaram relegados à subalternidade. O objetivo deste artigo é analisar na obra poética de Conceição Lima a representação do lugar ocupado pelos sujeitos desterrados.

Plan

Texte

Em ensaio intitulado O papel público de escritores e intelectuais1, Edward W. Said analisa a importância social dos escritores que, na atualidade, se posicionam no processo de luta pela liberdade, dignidade e justiça social. São relatos de testemunhos de violências praticadas contra minorias étnicas, de intolerâncias e censuras. Mas também são experiências que materializam a urdidura da história do próprio sujeito partícipe.

Não estou farta de palavras, afirma a voz poética da são-tomense Conceição Lima, revelando-se em um dos nomes que, ao vivenciar a história de seu país, desempenha «o papel simbólico especial do escritor como um intelectual que testemunha a experiência de um país ou de uma região, dando a essa experiência uma identidade inscrita para sempre na agenda discursiva global»2. Contudo, vale lembrar a asserção de Stuart Hall, para quem a experiência resulta de sentidos gerados no interior de categorias culturais e ideológicas:

é dentro dos sistemas de representação da cultura e através deles que nós ‘experimentamos o mundo’: a experiência é o produto de nossos códigos de inteligibilidade, de nossos esquemas de interpretação. Consequentemente, não há experiência fora das categorias de representação ou da ideologia3.

A constituição da representação está vinculada aos significados gerados pela colonialidade do poder4. Por isso, nos poemas de Conceição Lima, ao analisar a configuração do espaço (enquanto terra em seu sentido lato), norteio-me por questões tais como: Quem são os grupos sociais representados? Eles se autorrepresentam ou são representados? Quem é e como o «Outro» está representado?

Retomo a voz do poema em epígrafe que afirma: «Não, não estou farta de palavras./ É porque o tempo passa que as procuro./ Para que elevem, soberanas, o reino que forjamos.»5. Embora seja um poema de abertura da última publicação de Conceição Lima, estendo seu significado para o conjunto da obra da poetisa, a fim de indagar: como se fundamenta esse reino forjado?

Nascida em Santana, na ilha de São Tomé, em 08 de dezembro de 1961, Maria da Conceição de Deus Lima estudou Jornalismo, em Portugal, especializou-se em Estudos Afro-Portugueses e Brasileiros, no King’s College London, e em Estudos Africanos, na School of Oriental and African Studies (SOAS), em Londres. Como jornalista, Conceição Lima, além de possuir experiência de mais de vinte anos na BBC, fundou em São Tomé, no ano de 1993, o semanário independente «O país hoje». Na ilha, além da imprensa escrita, ela também trabalhou no rádio, na televisão.

Como poetisa, Conceição Lima tem inúmeros poemas publicados em periódicos6 e os organizados em três livros: O útero da casa, de 2004; A dolorosa raiz do Micondó, de 2006; O país de Akendenguê, de 2011.7 Sua produção poética encontra referencial na história e nos resíduos das diásporas. Eles podem se manifestar tanto nas relações sociais que se desenrolam no interior do espaço insular, quanto naquelas que ocorrem no seu exterior, mas com a história de socialização das ilhas sempre estão relacionados.

No prefácio do livro O útero da casa 8, Inocência Mata afirma:

O fluxo histórico na poesia de Conceição Lima parece ser a força motriz da produção de sentidos. Na verdade, o conteúdo emocional de alguns destes vinte e oito poemas é, poeticamente, minerado das lembranças do passado recente e exposto, vinte e oito anos depois, à análise da consciência individual, em confronto com a colectiva.

Penso que a constatação de Inocência Mata, relativa aos poemas que congregam o primeiro livro de Conceição Lima, pode ser ampliada às obras seguintes da poetisa são-tomense. Acrescentaria, como conjectura, que o «fluxo histórico» redimensiona sentidos, desvelando espaços sociais ainda inéditos. Isso decorre da emergência da representação de [novas] paisagens e [novos] territórios que possibilitam a eclosão de identidades, até o momento, silenciadas.

Embora Conceição Lima manifeste seu posicionamento como cidadã e como jornalista, aqui, interessa o inventário das experiências registradas nas tramas do texto poético, em cuja urdidura estão presentificadas, elucidadas ou problematizadas as mundividências tanto do indivíduo quanto dos diversos grupos de africanos, habitantes de São Tomé e Príncipe.

Retratos dos contratados: Que reino foi esse que plantámos?

Perguntam os mortos:
Porque brotam raízes dos nossos pés?
Porque teimam em sangrar
Em nossas unhas
As pétalas dos cacaueiros? Roça9

O padrão de descrição, classificação e dominação, conhecido por colonialidade do poder, identificado por Aníbal Quijano10 com a emergência do capitalismo moderno, encontrou nas ilhas de São Tomé e Príncipe um fértil território para sua propagação. Porém, Walter Mignolo alerta: «meu entendimento da colonialidade do poder pressupõe a diferença colonial como sua condição de possibilidade e como aquilo que legitima a subalternização do conhecimento e a subjugação dos povos»11.

Localizável na enunciação, um dos efeitos da diferença colonial é a impossibilidade de comunicação dos subalternos. É preciso considerar a relevância da questão. Mesmo uma rápida pesquisa às fontes históricas e à literatura são-tomense autoriza a afirmação segundo a qual as tensões sociais nem sempre incluem as habituais fraturas manifestadas pelas diferenças de cor da pele.

A diferença colonial (ou mesmo o choque de cosmovisão que resulta da diferença) se explicita em textos poéticos de Conceição Lima. Por meio dos poemas, ora a voz do eu poético, comprometido com as vozes dos sujeitos subjugados, narra suas histórias ora os próprios sujeitos relatam sua historicidade. Em ambos os casos, o início dos conflitos coincide com a chegada dos serviçais quando se deu «o renascimento económico das ilhas após o grande interregno dos séculos XVII e XVIII [que se deu] à custa de dramas de toda a espécie, cujo confronto só [pode] ser encontrado no nordeste do Brasil e nas Antilhas»12.

Há, dessa forma, semelhança entre os sistemas de plantação em São Tomé e Príncipe (afirmado por Francisco Tenreiro), no Caribe e no Brasil. Basicamente as diferenças nas plantations concernem à especificidade da planta, pois, entre o século XIX e XX, no Brasil e nos países do Caribe prevalece a produção de cana de açúcar, enquanto nas ilhas do Golfo da Guiné as plantas que atraem novos investidores são o café (1820) e o cacau (1822).13

A plantação é «o universo mais iníquo, mais sinistro que possa existir»14. Nas ilhas de São Tomé e Príncipe, as grandes propriedades agrícolas (as roças) relevam-se em espaços por excelência onde se desenrolam as relações sociais e, consequentemente, os conflitos que as medeiam e os sujeitos que as protagonizam. Portanto, a partir da roça emerge um sistema de vozes, se por um lado heterogêneo, por outro com pontos em comum, sendo o principal deles o da exclusão de seus discursos no projeto nacional. Com a intenção de romper com a homogeneização desse projeto, a voz poética de Conceição Lima se insurge e lança um desafio em forma de «Proposta»15 a seus interlocutores: «Apaguem os canaviais, os cacauzais, os cafezais/ Rasurem as roças e a usura de seus inventores/ Extirpem a paisagem da verde dor de sua íris/ E eu vos darei uma narrativa obliterada/ Uma esparsa nomenclatura sedenta de heróis».16

Aníbal Quijano17 sustenta que o controle dos meios de existência social, do qual fazem parte o trabalho e seus produtos, naturaliza as relações de dominação e exploração. O conteúdo da «Proposta» do eu poético mostra sua conscientização dos efeitos da classificação social e sua indignação contra essa forma de poder. Assim, reivindica o reconhecimento do trabalho dos escravos/serviçais para a riqueza dos senhores/roceiros.

Ademais, contra eventuais falhas de memória, de que a história oficial com suas lacunas é exemplo, o eu poético compõe a imagem do arquipélago com as paisagens das roças, as monoculturas que lhes são características e as desigualdades sociais. São elas que denotam «a usura de seus inventores». Porém, se as plantações fossem suprimidas do mapa, como se nunca tivessem existido, qual seria a base de economia das ilhas? Como seriam constituídas a história e a geografia do arquipélago?

Os contratados, segmento social responsável pelo trabalho nas roças, são anônimos nos documentos históricos e geográficos. Nos poemas de Conceição Lima, eles aparecem nomeados, chamando-se «Daimonde Jones»; «Kalua»; «Zálima Gabon»; «Jovani» e «Raúl Kwata Vira Ngwya Tira Ponha». Seus nomes exibidos nos títulos anunciam que suas histórias serão particularizadas, cabendo a cada um ostentar uma identidade, antes rasurada pelo processo de colonização. A composição da cartografia identitária permite o acompanhamento dos rastros de indivíduos diaspóricos, que foram forçados a abandonar a terra natal ou dela se afastaram voluntariamente em busca de trabalho.

«Nas minas da África do Sul/ seu nome ronga ou xope ou xangane/ ficou sepultado/ A sua sonoridade é hoje despojo irrelevante/ Na cruel ressurreição chamaram-lhe Diamond». É para a África do Sul que o eu poético se reporta para buscar o passado de «Daimonde Jones»18. A história desse sujeito se assemelha a dos africanos que foram transportados para o Caribe, «despojados de tudo, de toda e qualquer possibilidade, e mesmo despojado de sua língua»19. Édouard Glissant reflete: «O que acontece com esse migrante? Ele recompõe, através de rastros/ resíduos, uma língua e manifestações artísticas, que poderíamos dizer válidas para todos»20 (2005, p. 20).

Daimond está impossibilitado de recompor sua memória, por isso o rastreio segue os resíduos esparsos no tempo. Seguindo os vestígios, percebe-se que a marca da colonização ocultou a identidade étnica de Diamond, revelada pelo nome que lhe deram no ritual de nascimento. Porém, deixou em evidência a identidade e o motivo da ambição do colonizador que se comunicava em língua inglesa e procurava no extremo sul da África a riqueza nas minas de diamante.

Daimond Jones ê!
Daimooooonde!

Este livro obsceno que diverte a miudagem
tem a idade das roças de cacau na ilha de São Tomé

Não reside em Santa Margarida nem em Porto Alegre
nem na Aldeia Murça nem em Água Izé
O coração da cidade o acolhe e o repele

De Norte (Santa Margarida), Sul (Porto Alegre) e Leste (Água Izé) da ilha de São Tomé, inexiste lugar para Daimond. Na condição de desterritorializado, ele não inaugurou o caminho para o trabalho nas terras insulares do Golfo da Guiné. Antes e depois desse «esquivo transeunte», outros sujeitos históricos chegaram e foram responsáveis pela socialização definitiva das ilhas. Não se trata de uma alusão aos europeus, tampouco aos africanos que chegaram livres a São Tomé e Príncipe, desde o século XV, época do achamento. O recuo temporal segue os rastros dos cativos e seus descendentes, «presos às roças, sem condições para regressar à sua terra de origem»21.

Essa história cujo enredo se constrói pelo avassalamento de sujeitos é a de «Kalua»22:

Aos meus irmãos, os netos de Sam Nôvi,
que saberão porque lhe dedico este poema

Teu nome tão breve e tão outro
Sem nenhum adorno
Tua voz tão prestes, tão pouca no Budo-Budo
Tua saia de riscado, de pano soldado
Tua ração de úchua, teu peixe salgado
Teu jeito de dizer parana em vez de banana
Tuas mãos delgadas, meninas
Tão mãos, tão servas, multiplicando as horas
Teu canto de além-mar e de ilha
Tua estatura anciã na saudade detida

E Magaída, tua filha
Que nunca a Moçambique foi e diz quitxibá.

O sintetismo de Kalua resume-se à economia de seu nome, composto em poucas letras, de sua reduzida alimentação, de suas vestes e das palavras ditas. Em um jogo antitético, a figura de Kalua se amplia nos gestos dedicados a servir ao Outro e ao sentimento que a liga à terra natal. Da mesma maneira, a saudade que a aniquila, tornando-a hóspede da memória, lhe impulsiona. Por meio do canto «de além-mar e de ilha», valendo-se do poder dos resíduos, Kalua encontra seu território de desterritorializada.

Tal como «Daimonde Jones» e «Kalua», «Raúl Kwata Vira Ngwya Tira Ponha» continua no período pós-independência a viver à margem. A interrogação ao sistema que as gerou realiza-se com a marcação da presença das personagens na cena textual. Isso não provoca inacessibilidade direta a suas vozes, pois a voz enunciativa coaduna-se ao padecimento experienciado. De acordo com Inocência Mata,

o que é relevante na poesia de Conceição Lima é que se trata de um olhar internalizado, através do qual o sujeito destinador interpela o autor de exclusão (o forro e o minuyé) em situação em que o interlocutor não é o outro, mas o mesmo, em que o objecto de exclusão tem voz activa23.

Nesse sentido, o poema «Raúl Kwata Vira Ngwya Tira Ponha»24 é exemplar:

As alegres calças, de palhaço, não eram suas.
Não era sua a camisa.
O castanho e o preto
nos pés esquerdo e direito
eram de outro.
Inteiro, de bom cabedal
O cinto não condizia – luzia.
A própria magreza do osso miúdo
não lhe pertencia – pairava.
Tossia muito, tropeçava.
Arrastava com ele dois olhos
raposinos, trocistas, de maroto
e era dono de um riso estilhaçado –
o seu escudo.
Nos passos carr
egava um arsenal
de histórias vivas, antigas
e tinha o poder de arrancar gargalhadas.
Sabia os nomes de todas as roças –
em nenhuma ficava sua aldeia.
Morreu pária na ex-colónia.
Está enterrado na ilha.
Não reparou na nova bandeira.

Como o de Kalua, ao se expor, o corpo de Raúl Kwata comunica e interroga de imediato. Novamente, entram em cena imagens criadas por antíteses. No visual de Raúl, a presença significa ausência, à medida que nada lhe pertence: calça, camisa, cinto, sapato. Privado de roupas e calçado, o corpo nu e o excesso de tosse denunciam a carência de alimentos. A identificação do eu poético com Raúl talvez ocorra pela diferença de postura diante da penúria. Enquanto o eu poético realiza uma crítica contundente contra uma ex-colônia, onde indivíduos que muito contribuíram para a edificação da nação morrem párias, Raúl Kwata não demonstra qualquer preocupação, talvez por causa de uma rotina penosa nunca tenha cultivado expectativas em relação ao futuro do país (ou ao seu próprio futuro). Logo, não havia de reparar nas semelhanças entre a nova e a velha bandeira.

Segundo Walter Benjamin, «a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de ‘agoras’»25. A memória presentifica o tempo pretérito, materializando momentos. O processo está, de uma outra maneira, explícito no poema «Zálima Gabon»26, por meio do qual os mortos são convocados. Porém, enfatizo que o chamamento é dirigido aos zálimas, aos indivíduos mortos nas ilhas descendentes de serviçais.

À memória de Katona, Aiúpa Grande
e Aiúpa Pequeno
À Makolê

Falo destes mortos como da casa, o pôr do sol, o curso d’água.
São tangíveis com suas pupilas de cadáveres sem cova
a patética sombra, seus ossos sem rumo e sem abrigo
e uma longa, centenária, resignada fúria.

Por isso não os confundo com outros mortos.

Porque eles vêm e vão mas não partem
Eles vêm e vão mas não morrem.

Permanecem e passeiam com passos tristes
que assombram o barro dos quintais
e arrastam a indignidade da sua vida e sua morte
pelo ermo dos caminhos com um peso de grilhões.

Às vezes, sentados sob as árvores, vergam a cabeça e choram.

Rompendo com a pretensa homogeneidade da classificação do elemento vindo,27 a permanência dos fantasmas mostra que nem todos se resignam como Raúl Kwata ou se apaziguam apenas com as recordações, como Kalua. Africanos em África desterrados, os gabões mortos-vivos permanecem a fim de reclamar pelo território que não tiveram em vida. O eu poético transita com desenvoltura no âmbito do sagrado, já não confunde os espectros, solidarizando-se desde sempre com os manifestantes. Por isso, fala dos «mortos como da casa, o pôr do sol, o curso d’água».

Solidariedade também se traduz por aderir à causa com a qual existe identificação. O eu poético clama pelos direitos daqueles cujas vozes foram silenciadas. Embora se saiba que a dívida com os mortos-vivos jamais será liquidada, o ritual é instaurado para a necessária comunicação com o sagrado.

Por remorso, temor, agreste memória
Por ambígua caridade, expiação de culpa
aos mortos-vivos ofertamos a mesa do candjumbi
feijão-preto, mussambê, puíta, ndjambi.

Para aplacar sua sede de terra e de morada
Para acalmar a revolta, a espera demorada.

Eles porém marcharão sempre, não dormirão
recusarão a tardia paz da sepultura, o olvido
acesa sua cólera antiga, seu grito fundo
ardente a aflição do silêncio, a infâmia crua.

A decisão dos zálimas de persistir reivindicando uma fração da terra vem da experiência inscrita na memória do corpo. São consequências da diferença colonial e do choque de cosmovisões que os deixaram tatuados com as marcas da violência. Todavia, mesmo esbarrando na sentença ancestral da eterna desterritorialização e da ausência de interlocução, os espectros já não temem os vivos, pois descobriram que há outras possibilidades para serem ouvidos, outros canais a serem acionados.

Essa é também a revelação do «Manifesto imaginado de um serviçal»28. Posicionando-se em primeira pessoa, o serviçal desabafa pelo ressentimento sofrido durante muitas gerações. Sem êxito, foram décadas após décadas de tentativas de expressão. Dono da palavra, o serviçal se dirige aos brancos (ngwêtas), aos forros e ao chão, a terra-território, à ilha e aos que, ligados por laços fraternos, se encontram na mesma condição de serviçal (irmãos).

Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui, onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma outra cidade
que adubei.

O serviçal está consciente de que sua identidade é sobretudo territorial. E o território situa-se no espaço por ele construído e socializado. O Sul, a terra natal, ficou cada vez mais distante, somente restaram resíduos. Teóricos, críticos e escritores têm mostrado que os indivíduos em diáspora vivem a complexidade de se relacionar, concomitantemente, com a terra natal e com a terra onde se está. Mas no discurso do serviçal inexiste menção ao retorno, já não há tempo para refletir sobre sua relação com a terra de origem.

Irmãos:
Deita-me amanhã no terreiro à hora do sol nascente: quero
olhar de frente as plantações. Quero contemplar, morto e inteiro, meu
legado involuntário de africano em África desterrado.
Clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo.
Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força.
Não mo negueis, ó híbridos forros, com vosso frio desdém de
séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos
meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde agora
começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos todos
que cavaram meu destino.

Irmãos:

Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.

Chegámos de muito longe sem casa.
Daí-me a beber agora a amarga infusão do caule do aloé, quero
esgotar o cálice do nosso calvário.

A aproximação da morte impulsiona o serviçal a exigir que seus últimos desejos se cumpram. No entanto, seus pedidos não contemplam vontades individuais. Ainda que por meio de um discurso imaginado, ao reclamar seus direitos como sujeito histórico, ele o faz para sua comunidade, também imaginada. Para a comunicação de fato se efetivar, o serviçal escolhe uma configuração textual que não seja obliterada pela diferença colonial assumida por instâncias do poder no pós-independência.

Por meio do manifesto, sua voz reivindicante ressoa pelas plantações e conscientiza todos os classificados socialmente como «serviçais». A fala do serviçal evidencia que em vez de naturalização, nas relações de trabalho existem dominação, exploração e o inevitável conflito. Portanto, o desenraizamento nem sempre acontece por inadaptação subjetiva ao espaço presente ou por força do elo umbilical com a cultura de origem. O desenraizamento (ou a permanente desterritorialização) também pode ocorrer pela falta de oportunidade, pela miséria, pelas disputas territoriais nas lutas pela geografia. Por isso, o discurso do serviçal denota que o sentimento de pertença é um direito a ser disputado.

Nos poemas de Conceição Lima, revelam-se os retratos dos contratados, indicando o comprometimento da poetisa com um segmento da sociedade são-tomense totalmente marginalizado. Os serviçais não entraram no inventário da nação e dela continuam excluídos. A maioria dos poemas citados se concretiza por uma voz enunciativa que num gesto de alteridade se coloca no lugar dos serviçais. Ao adotar a causa dos excluídos, ela se torna a arena de luta da própria voz enunciativa. Assim os serviçais (incluindo a voz poética) passam, na cena da enunciação, a existir, denunciar a opressão e exigir seus direitos de «filho da terra», como mostra a última estrofe do poema «Manifesto imaginado de um serviçal»:

«Ilhas! Clamai-me vosso que na morte/ não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje/ de raízes de sândalo e ndombó/ Sou filho da terra»./

Percebe-se que nesse engendramento textual não sucede um «falar por», caracterizando o amordaçamento do subalterno. Ao contrário, através dos poemas, os serviçais assumem seu lugar de sujeitos históricos, revelam suas histórias de vida e denunciam a violência a que foram submetidos. «Por que brotam raízes dos nossos pés?» A indagação vem da voz enunciativa, materializando o poema «Roça» (2004, p.30), título que nomeia o espaço socialmente transformado. A pergunta evidencia a desterritorialização e a necessidade de territorialização. Mas a questão do território está entrelaçada a do poder, político e/ou simbólico. Dar-se conta desse processo é indagar: «Que reino foi esse que plantámos?»

Bibliographie

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GLISSANT, Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Traduzido por Enilce Albergaria Rocha. Juiz de Fora: UFJF, 2005.

HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Traduzido por Adelaide La Guardia Resende, Ana Carolina Escosteguy, Cláudia Tavares, et al. Belo Horizonte: UFMG, 2006..

LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó. Lisboa: Caminho, 2006.

LIMA, Conceição. O país de Akendenguê. Lisboa: Caminho, 2011.

LIMA, Conceição.O útero da casa. Lisboa: Caminho: 2004.

MIGNOLO, Walter D. Histórias locais /Projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Traduzido por Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

QUIJANO, Aníbal. « Colonialidade do poder e classificação social ». In: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010.

SAID, Edward W. « O papel público de escritores e intelectuais ». In: ______. Cultura e Política. São Paulo: Boitempo, 2003.

TENREIRO, Francisco. Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe: esquema de uma evolução conjunta. Cabo Verde: Boletim de propaganda e informação, Praia, ano VII, n. 76, p. 12-17, 1 jan. 1956.

Notes

1 SAID, 2003. Retour au texte

2 SAID, 2003, p. 29. Retour au texte

3 HALL, 2006, p. 171. Retour au texte

4 QUIJANO, 2010, p. 84 - 130. Retour au texte

5 LIMA, 2011, p. 27. Retour au texte

6 Conforme a indicação de Inocência Mata, transcrevo a relação de periódicos que exibem poemas de Conceição Lima: “Suplemento Cultural” de O Diário (Lisboa, 1982); A Descoberta das Descobertas ou as Descobertas da Descoberta das Descobertas ou as Descobertas da Descoberta (São Tomé, 1984); Sonha Mamana África (São Paulo, 1987); O Coro dos Poetas e Prosadores de São Tomé e Príncipe (1992); revista austríaca Sterz (Viena, 1996); Tchiloli Revista de São Tomé e Príncipe (Lisboa, 1997); Antologia da Poesia Feminina dos Palop (Santiago de Compostela, 1998); Vozes Poéticas da Lusofonia (Sintra, 1999); Antologia do Mar na Poesia Africana de Língua Portuguesa (Rio de Janeiro, 1999); Rostos da Língua (Maputo, 1999); Bendenxa – 25 poemas de São Tomé e Príncipe para os 25 anos da Independência (Lisboa, 2000); Metamorfoses – Revista da Cátedra Jorge de Sena da UFRJ (Rio de Janeiro, 2000) e em vários números de Batê Mon – revista da UNEAS (São Tomé) (MATA, Inocência. Apresentação. In: LIMA, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Caminho, 2004). Retour au texte

7 Não serão utilizadas legendas para indicar o nome da obra da qual o poema foi retirado. Como são apenas três as obras referenciadas, elas poderão ser facilmente identificáveis pelo ano de publicação, que acompanhará o título do poema citado. Retour au texte

8 LIMA, Conceição. O útero da casa. Lisboa: Caminho: 2004, p. 30. Retour au texte

9 LIMA, 2004, p. 30. Retour au texte

10 QUIJANO, 2010, p. 84-130. Retour au texte

11 MIGNOLO, 2003, p.40. Retour au texte

12 TENREIRO, 1961, p. 78. Retour au texte

13 As datas de introdução do café e cacau em São Tomé e Príncipe basearam-se em TENREIRO, 1956, p. 13. Retour au texte

14 GLISSANT, 2005, p. 21. Retour au texte

15 Título de poema. Retour au texte

16 LIMA, 2004, p. 31. Retour au texte

17 QUIJANO, 2010, p. 116. Retour au texte

18 LIMA, 2004, p. 32-33. Retour au texte

19 GLISSANT, 2005, p. 19. Retour au texte

20 GLISSANT, 2005, p. 20. Retour au texte

21 HENRIQUES, 2000, p. 9. Retour au texte

22 LIMA, 2004, p. 34. Retour au texte

23 MATA, 2010, p. 145. Retour au texte

24 LIMA, Conceição. A dolorosa raiz do micondó. Lisboa: Caminho, 2006, p. 24. Retour au texte

25 BENJAMIN, 1994, p. 229. Retour au texte

26 LIMA, 2006, p. 22. Retour au texte

27 Segundo Inocência Mata, trata-se de uma “expressão utilizada pelos forros (naturais de São Tomé) para se referirem a todo o não forro, isto é, habitante africano recente nas ilhas ou seus descendentes, os tongas, que significa ‘aquele que veio do continente’” (2010, p. 145). Retour au texte

28 LIMA, 2006, p. 35. Retour au texte

Citer cet article

Référence électronique

Adriana Elisabete Bayer, « Conceição Lima: a poética cartografia que contesta a resignação e o silêncio », Reflexos [En ligne], 2 | 2014, mis en ligne le 18 mai 2022, consulté le 28 avril 2024. URL : http://interfas.univ-tlse2.fr/reflexos/660

Auteur

Adriana Elisabete Bayer

PUCRS

Doutora em Teoria da Literatura

adribayer@gmail.com

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